Crônica de um Delírio
As luzes passavam pelas lentes diáfanas daqueles óculos escuros menores que seu rosto. A música tocava dentro dele e as pessoas estavam borradas. Essa era exatamente a sensação que ele tinha. As pessoas estavam borradas e o tempo passava muito rápido. Parecia uma fita vhs quando se apertava o botão avançar do vídeo cassete. Agora isso veio à sua cabeça. O vídeo cassete quatro cabeças que seu pai comprou quando tinham 10 anos. Eles apertando avançar para que a advertência passasse rápida e logo pudessem ver as aventuras sexuais de Emmanuele em vários lugares do mundo nas mais diversas situações. E agora está lá. Ele dentro da cabeça dele, com o membro na mão. Esperando começar a porra do filme, com aquela música acachapante que só foi criada anos depois. Fora dele aqueles vultos borrados do botão avançar do vídeo cassete quatro cabeças que o pai comprou de um chinês que vendia coisas do Paraguai.
A música começa a tomar conta do seu corpo e ele esquece do menino de 12 anos que se masturba pensando naqueles loucos cabelos grandes de Emannuele. Mas ele não tinha 12 anos ou não era Emannuele. Foda-se, isso nada importa agora que ele já esqueceu aquele menino com o pau na mão e soltou o corpo no ritmo daquela música que nada dizia. Ele sentia uma vontade desenfreada de abraçar alguém. Não precisava mais nada do que isso. Abraçar e amar alguém. Doar amor mesmo que fosse para um eterno desconhecido ou desconhecida.
Alguém o passa uma garrafa de água mineral. Ele quase não acredita que alguém sabe que ele precisa de água e abraça o desconhecido como abraçaria um presente de deus. Isso mesmo, deus com letra minúscula. Ele não ousava citar um deus com letra maiúscula, principalmente quando drogado. E naquele jogo louco de imagens correndo no vídeo cassete quatro cabeças ele viu que não era um desconhecido, mas Ela. Ela sim com letra maiúscula, Ela presente/ausente no seu manto incorruptível de sempre parecer que não quer nada de nada.
A música continua e seu corpo também. Não está mais abraçado a Ela, mas a sensação ainda é maravilhosa. Agora ele sente-se leve, solto no vento ao sabor das batidas incessantes da música. Sente que seu corpo tem o peso da alma e alma pesa um segundo. Porque coisas podem pesar por tempo, só precisamos estar leves o suficiente para entender isso. A música agora o leva ao topo da casa, que agora ele percebe ser um galpão enorme e altíssimo. Ao lado dele flutuam pessoas e coisas e principalmente o som. Cada qual com a cara que deve ter. E de repente ele encara um som de beijo. Altivo e matreiro como deve ser, imagina que deva ser um roubado, senão não seria tão cínico. E quando decide falar isso a ele sente de volta todo o peso do seu corpo. Não só do seu corpo, mas do mundo todo. Pela primeira vez ele sente o peso do mundo e esse peso todo pesa no estômago e quer sair pela boca. Enquanto vomitava no banheiro seguro por Ela lembra de nunca mais querer falar a um som de beijo que ele é cínico.