TROCANDO DOIS POR MEIA DUZIA

Há muitos anos estávamos sem férias a sós. Com dois filhos, nossa intimidade e privacidade sempre acabam interrompidas por um manhê ou paiê. Nenhuma avó, tia ou dinda para deixá-los. Um tio solteirão arrumou uma companheira. Combinamos que eles ficariam com tio Gorducho e tia Pequena. Para isto o tio Gorducho exigiu um kit de filmes com pipoca e refrigerante. Deixamos os guris com o kit. Fomos namorar no Morro Santa Tereza. Deitar no sol daquela tarde de domingo; apreciar o Guaíba e de lambuja, lá embaixo, a paisagem da torcida vermelha e branca no Beira-Rio. Estacionamos o Carro Jaburu e não conseguimos abrir a porta. Meia dúzia de pirralhos se aproximou: tem um trocadinho tio? Baixamos a janela e meu marido puxou papo com a gurizada. Seus nomes, idade, time de futebol, onde moravam. Queriam perguntar, saber, futricar. De cara tiraram todas as proteções dos ventis nos pneus. Esqueceram-se de pedir moedas para os demais visitantes que chegavam ao local. Um dizia que o fulano risca o carro de quem não dá nada; outra falava que os guris fazem “Crow” nas meninas. Saímos do carro, subimos a rampa do gramado, sentamos numa pedra. Em dois minutos a meninada nos rodeava novamente. Cada um tinha uma história: o pai foi embora; a irmã mais velha está grávida; o primo que se vestia de moça foi atropelado, quebrou as duas pernas e morreu; aquela que está passando é da Igreja. Uma menina contou que ‘a tia foi presa por roubo, ficou doente dos pulmões porque no presídio dormia com as costas no chão frio. Agora estava em coma no hospital e os três primos, filhos desta tia, estavam na sua casa e tinha que dividir sua cama com eles’. Outro moleque, não tinha mais que 6 anos, com uma vara na mão, corria atrás de duas adolescentes dizendo para o amiguinho: ‘vou bater nestas vagabundas que mexeram comigo’; ‘pega o bagulho aí mano’. Entre estas cenas e assuntos, a tarde se foi e com ela, mais uma vez, nosso momento de privacidade. Mas nada acontece por acaso. Retornamos com mais um aprendizado: como nossos filhos são mimados, têm tudo e reclamam de barriga cheia.

Às vezes o que uma criança tem de menos, poderia sobrar para outra meia-dúzia. Quando os pais são exigidos pelo consumismo dos filhos, deveriam pensar setenta vezes sete, antes de abrir a carteira. A carência afetiva e material empobrece a alma e leva crianças e jovens ao mundo dos vícios. A falta destas carências (ou excesso de zelo, como queiram), pode ter os mesmos ou piores efeitos.