Lembrando o 24 de maio
Quando eu era garoto em Itabaiana, no dia 24 de maio vestia a farda de gala da escola João Fagundes de Oliveira e saía em marcha batida para uma pontezinha que fica entre a saboaria e a igreja assembléia de Deus. No local, as professoras liam trechos de compêndios de História, os alunos mais afoitos declamavam poemas e os tímidos, iguais a mim, apenas ficavam olhando para as pernas das meninas, tentando entender o verdadeiro significado daquele cerimonial. Mas naquelas cabecinhas meio vazias ficava um quê de orgulho, porque ano a ano solidificavam em nossas mentes uma história bonita de guerra, de heroísmo e patriotismo por parte de antigos habitantes destas terras.
Era a famosa batalha do Riacho das Pedras. Mais de duas mil pessoas de Pilar, Itabaiana e Pedras de Fogo se reuniram para enfrentar o exército português, numa briga nunca vista nesse Nordeste velho de guerra, até então. No fim do conflito, restaram mortas cerca de 400 pessoas, tingindo de vermelho o riacho que ainda hoje corta Itabaiana. Foi em 1824 esse marco histórico das lutas pela independência do Brasil. Ironia: nos anos de chumbo da ditadura militar, as cândidas professoras louvavam o exemplo dos que deram suas vidas por uma pátria livre, sem saber que os porões do regime de força estavam cheios de heróis modernos sendo torturados e mortos naquele instante, apenas porque sonharam com um país mais justo e mais fraterno.
Os nomes dos heróis: Félix Antonio, José de Brito Jurema e tantos outros, articuladores da Confederação do Equador, movimento de resistência dos brasileiros contra as arbitrariedades e perseguições dos portugueses. Ficaram também os nomes grandiosos de Padre Antonio Félix Cardoso, Antonio José Barbosa, Custódio Vaz de Carvalho David de Leopoldo Targino, Francisco Borges, Faustino Soares e o pernambucano José Apolinário Farias, guerreiros e líderes daqueles dias, todos mortos ou degredados pelo opressor português.
Com o passar dos anos, deixamos de reverenciar nossos heróis. Até uma plaquinha indicando o local dessa singular peleja desapareceu do local. Esses homens que doaram suas vidas pela construção da nação brasileira mereciam monumentos, deviam ser lembrados por todas as gerações, como se faz nos países que respeitam sua própria memória. Não temos esse costume, infelizmente. Hoje, se você perguntar a um aluno da escola João Fagundes de Oliveira o nome de um herói nacional, provavelmente ele vai dizer que é Ronaldo “o fenômeno”.
Sonhar com a volta ao resgate histórico de personagens que fizeram a nossa história é o que posso fazer nessa data de 24 de maio. Na América do Norte, eles não cansam de lembrar os feitos dos seus heróis, alimentando o patriotismo do povo. Inspirados nos seus grandes líderes, as novas gerações construíram uma nação poderosa.
O padre Antonio Félix Cardoso era maçom. Esse bravo sacerdote católico foi preso pelos portugueses, sofrendo graves suplícios nas masmorras coloniais, pelo crime de lutar por um Brasil independente. Dizem que na batalha do Riacho das Pedras, o padre Antonio lutou com um bacamarte numa mão e o rosário em outra. À medida em que abatia um soldado português, ele rezava ligeiramente pela salvação da alma do suplicante. Igual a Frei Caneca, também maçom, um dos idealizadores da Confederação do Equador, o padre Antonio Félix bem que merecia uma reverência da loja maçônica de Itabaiana, para não passar em brancas nuvens o 24 de maio.
O ideário de liberdade e autonomia política teve, assim, seu ponto alto nessa batalha em Itabaiana, a primeira cidade a lutar pela independência do Reino de Portugal em terras tabajarinas. Esses heróis o Brasil desconhece, mas sem o sangue generoso deles não haveria história.
No Piauí deu-se uma batalha semelhante em 13 de março de 1823, quando tropas portuguesas leais à coroa e um exército improvisado de vaqueiros e lavradores travaram luta às margens do riacho Jenipapo no município de Campo Maior. Também foi uma pugna decisiva para a consolidação da independência do Brasil. Mas lá, diferente de Itabaiana, ainda hoje se reverencia esse fato histórico. Aqueles heróis piauienses tiveram que esperar muito pelo reconhecimento do seu feito memorável, mas depois foi construída coluna comemorativa, monumentos, placas metálicas, exposição de peças de artilharia e outros artefatos que contam a História para as gerações seguintes. O Exército Brasileiro deu o nome de “Batalhão Heróis de Jenipapo” a um batalhão de engenharia. Até o poeta Carlos Drummond de Andrade homenageia aqueles heróis no poema “Cemitérios”.
Falando em poetas, para encerrar, cito os versos do poeta turco Nazim Hikmet: “Se eu não me queimo, se tu não te queimas, como as trevas se farão amanhecer”?