HERANÇA MORAL
Ir atrás de nossas origens é como procurar o caminho de volta pra casa... E quanto conforto quando se encontra!
Fui para o Espírito Santo a procura de informações sobre a vida de meu bisavô Pietro, percorrendo o Estado, seguindo o rastro dele, mesmo depois de tantos anos, porque queria requerer a cidadania italiana para minha família e precisava de todos os dados dele. Tinha alguns, mas não todos. As pessoas mais velhas falavam muitas coisas, mas algumas eram contraditórias e não sabiam tudo. Precisava do nome do navio em que ele havia embarcado da Itália para o Brasil, por exemplo. Já havia procurado nas centenas de listas de passageiros na internet, nas prefeituras, organizações e acervos do estado do Espírito Santo, nos museus, enfim, em todos os lugares possíveis. Não encontrava o nome de meu bisavô em nenhum deles... Mas meu bisavô tinha vindo num daqueles navios. Eu só não sabia em qual, nem a época certa.
Minha viagem foi belíssima e muito interessante. Pude sentir aquele pequeno e maravilhoso mundo, aquele universo de humanidade, riqueza de determinação, emoções e humorismo que é a nossa história, escrita pelos imigrantes. Voltei amando mais a minha família e respeitando mais as nossas origens.
Encontrei pessoas simples, mãos calejadas, dedos grossos, olhos azuis e com um sotaque forte de erres e de sons terminados em “on” (facon, mom, pon, corazon... facão, mão, pão, coração...)
Encontrei parentes e amigos – um povo alegre, hospitaleiro, comida caseira, mesas fartas, muito vinho tinto e corações grandes.
Não vi riquezas, carros caros, roupas de etiquetas, nem mansões. Mas, vi aquilo que é o mais belo na essência humana: a autenticidade!
Eu entrei numa máquina do tempo...
Ouvi histórias horríveis das viagens nos navios, sobre a fome, o frio, as dificuldades, muitas doenças, mas, também, histórias de muita coragem, muita união, solidariedade, alegria, muito vinho, muitas esperanças...
Vi plantações, ferrovias e belas estações de trem, também algumas abandonadas e muito destruídas... Que pena! Que tristeza! Senti meu coração apertado ao ver parte de nossa história sendo esquecida e apagada pelo abandono e desdenho.
Vi plantações enormes de café, mexerica, jabuticaba, laranja e gengibre. Senti a existência do estado do Espírito Santo surgindo graças ao trabalho bruto e determinado dos italianos.
Saí de Minas Gerais para repetir um trajeto feito pelo meu bisavô, buscando encontrar alguém que pudesse falar dele e de sua história, me fornecer as informações que eu precisava para um processo de cidadania... Quando fiz esta viagem, não sabia que encontraria tantas coisas... Não sabia que sentiria tantos arrepios nem que me emocionaria tanto... Não sabia que meu bisavô me esperava lá...
Cheguei à cidade de Araguaia à noite. Não havia hotéis ou hospedarias... Era noite e eu estava bem cansada. Lembrei-me de uma amiga que havia nascido ali. Telefonei para ela, em Vitória, expliquei minha situação e ela, prontamente, me disse que fosse para casa de seus pais. Fui recebida com carinho e nos sentamos na varanda para conversar um pouco, antes do banho e descanso que tanto queria.
Me perguntaram o que eu fazia ali e contei-lhes do meu projeto de encontrar informações de meu bisavô Pietro Detassi.
Um dos membros daquela família era uma “nonna”de 98 anos, avó de minha amiga.
Quando ela escutou o nome de meu bisavô, levantou-se da cadeira, veio andando com a dificuldade que a idade lhe impunha e me abraçou forte com os olhos cheios de lágrimas e falou : “-Pietro, um santo homem!!”... Me pegou pela mão e me levou casa a dentro, mostrando o lindo e antigo jogo de quarto - cama, guarda-roupa, cômoda, criados mudos - e dizendo que havia sido feito pelo meu bisavô como presente de casamento para ela!... Eu não acreditava!! Eu olhava aquilo e não conseguia falar nada!!! Eu estava entre assustada e feliz... Aquilo não era coincidência, mas, para mim, um sinal...
Me esqueci do cansaço e fiquei horas conversando com ela e eu amava seu sotaque :). Era como se estivesse conversando com minha vó Neném... Que saudade! Que saudade, gente!
Ela me disse que havia mobílias e altares no museu da cidade, feitos por ele, e que os altares era o que ele mais gostava de fazer em sua marcenaria. Que as portas do Palácio do Governo, na capital Vitória, haviam sido feitas por ele!
Quanta emoção eu senti ao visitar o Museu de Araguaia, no dia seguinte, e ver todas aquelas peças com o nome dele logo abaixo.
Meu bisavô foi marceneiro, médico e Juiz de Paz. Curou muitas pessoas acometidas pela malária (impaludismo) e, também, amputou a perna de um homem usando seu serrote, uma toalha para que ele mordesse e cachaça, como anestésico. Acreditem, ele estava vivo e eu o conheci!
A avó de minha amiga, Sra. Maria, me disse que a poucos quilômetros dali, morava a Sra. Maria Presti e que ela havia conhecido muito o Pietro. Haviam sido vizinhos.
Dormi ansiosa para que o dia amanhecesse e segui viagem pela manhã. Foi uma emocionante e aconchegante estada.
Parti procurando, agora, pela D.Maria Presti.
No caminho, a poucos quilômetros da saída da cidade, tinha sido a marcenaria do Pietro. Claro que não existia mais... Parei o carro, desci, caminhei devagar tentando sentir e descobrir se ele estava ali ainda... Me abaixei e coloquei um punhado daquela terra em um saco plástico. Iria entregar ao meu pai. Assim que cheguei em casa, alguns dias depois, entreguei aquele saquinho com terra, dizendo:
"-Pai, esta é a terra onde era a marcenaria do nonno Pietro" e ele me perguntou sorrindo, com os olhos mais abertos :
"- E ela ainda está lá??" e continou: "- Quando eu morrer, quero que coloquem esta terra dentro do meu caixão"... e a gente se abraçou forte, emocionados e eu entreguei pra ele toda a energia que havia trazido de minha viagem. Eu trouxera de presente o Pietro vivo!
Encontrei dona Maria Presti numa casa bem afastada e isolada. Ela estava com 103 anos, corpo curvado, cabelos branquinhos, mas os olhos azuis brilhavam cheios de vida ainda. Quando disse a ela que eu era a bisneta do Pietro Detassi o mesmo aocnteceu. Ela me abraçou forte, chorando e me beijando, repetidamente, de um lado e outro do rosto, dizendo:
“- Dio mio, Dio mio, una discendente di Pietro, un santo uomo, un santo uomo!” (Meu Deus, meu Deus, uma descendente do Pietro, um santo homem, um santo homem!)
Passamos a tarde toda conversando, bebendo café com leite, comendo biscoitos e nossos olhos tinham o mesmo brilho. Os dela pelas recordações e os meus pelas emoções das descobertas. Eu amava estar ali ouvindo aquelas histórias e seu sotaque carregado. Estaria lá até hoje se não tivesse que seguir viagem.
Ela me mostrou, apontando para o alto de um morro próximo, onde o Pietro havia morado. Me contou como ele havia chegado ao Brasil, viajando por 28 dias no Navio Las Palmas, escondido no porão, dentro de uma caixa de madeira, e desembarcado no Porto de Beneventes, hoje Anchieta. Havia vindo com dezessete anos, sem passaporte e ilegalmente. A família de Nicolau Serafim o havia ajudado, dando-lhe comida e vigiando para que ele pudesse sair de dentro da caixa, sempre que possível.
... Por isto eu não encontrava o nome dele em nenhuma das infinitas listas de passageiros daquela época! ... Ele estava lá, dentro de uma caixa de madeira no porão, sem documentos, sem passaporte, apenas, portando em seu coração esperanças e sonhos.
Eu me recordei, então, que o nome de minha bisavó era Giacoma Serafim...
Pietro se casou mais tarde com a filha de Nicolau Serafim e, assim, começava a nossa família e seus descendentes. Me lembrei com saudades dos meus avós e quis que o tempo voltasse.
Comecei a percorrer os cartórios de registro de Araguaia, Matilde, Alfredo Chaves e Vila Velha requerendo os documentos e certificados que eu precisava.
Retornei desta viagem querendo muito a minha cidadania italiana, porque senti o que somente um Detassi, o Pietro, um rapazinho de 17 anos, que chegou na América somente com uma caixa de marceneiro nas mãos, deixou nos muitos museus e nos muitos corações das pessoas que o conheceram.
Senti como era respeitado e amado, como um homem de bem e para o Bem. Senti como é forte no meu sangue, como sinto orgulho desta história, o quanto amo este povo e a sua cultura, o seu trabalho e as minhas origens.
Este tipo de orgulho é um sentimento que me faz grande... Que me faz sentir respeito pela dignidade humana, me faz querer repetir a história do Pietro e que esta é a minha herança moral!!
Obrigada, meu bisavô, Pietro Detassi!
Obrigada, meu avô, Giuseppe de Tassis!
Obrigada, meu pai, Alcides de Tassis!
Con amore,
Gláucia de Tassis / Janeiro.2007
Hoje, 17 de Maio de 2009, assinamos, minha família e eu, em Belo Horizonte, o Ato de Cidadania Italiana.
Na foto em que meu pai assinava, apareceu uma grande bola luminosa acima de sua cabeça. Podem dizer que foi uma falha da máquina, um reflexo qualquer ou qualquer explicação científica e matemática para o fato. Não me convencerão.
Para mim, aquela bola de luz era ele... o Pietro! ........ Afinal, ele não poderia faltar a esta solenidade, não é mesmo? :)