AQUELA... "VACABUNDA" !
AQUELA... "VACABUNDA" !
No tempo em que lá estudei (1961-64), Alto Paraguaçu era um vilarejo de umas duas mil almas, distrito da distante Itaiópolis, situado no cume de enorme serra catarinense. Tinha colossal igreja na área central, tendo ao lado um colégio (dirigido pelas Irmãs Paulinas) de fazer inveja aos maiores do Município.
O prédio principal -- com várias salas de aula, sótão com 2 dormitórios, mais as dependências reservadas às freiras -- se tornava imenso nas férias, quando só restavam nas ESCOLAS REUNIDAS SÃO JOÃO BATISTA os gêmeos Azevedo, quase "sem pais" e que a tia "esquecia" de ir buscar no colégio.
Rodávamos feito beija-flor em jardim primaveril, sem saber aonde ir, olhos compridos no portão principal, sonhando com o verão em Rio Negro (PR), "matinèes" com pipoca no Cine Marajá nos domingos e banhos no rio caudaloso quase todas as tardes.
Os rios de nossa infância cavam "canyons" em nossos corações e continuam acorrer neles, até o fim de nossos dias. Daquele negro rio guardo indeléveis duas lembranças: o de uma tarde fria em que fizemos 3 "camas" de plantas aquáticas bojudas e nos largamos rio abaixo, para descer 2 ou 3 curvas após.
Sem saber mais do que espanadar água num arremedo de nado de peito, acabamos no meio do caudal gelado, gritando feito maricas, sem ninguém para ouvir. Por fim o suplício terminou uns 6 km depois, quase noite já, numa curva mais forte. O primo Osmar jurou silêncio e, assim, pudemos todos voltar ao rio Negro outras vezes. Brincar de "bóia"... nunca mais !
A outra recordação tem o rio como túmulo: era costume nosso andar sem destino sobre os trilhos abandonados da outrora movimentada estrada de ferro. Naquela manhã a razão foi outra... jogar 3 ou 4 gatinhos, vivos num saco de aniagem, do meio da mais alta ponte, mata adentro.
Como não tínhamos gata na casa dos tios, deve ter sido "sugestão" de uma vizinha. Serviço feito com o prazer próprio da idade, o saco desceu boiando o caminho d'água, 21 ou 28 "vidas" se debatendo num terror gelado.
Mas, voltemos ao colégio! Jamais entendi o plural no título e nem tampouco o Reunidas pois a escola não tinha filiais. Além de estudar e brincar, penso que meu irmão e eu trabalhávamos, já que me recordo de ajudar no fabrico de sabão -- num tacho gigante cheio de vísceras de animais, entre outras "imundícies" -- ou colhendo talos de uma planta enorme (semelhante ao tinhorão) para fazer "gengibirra", espécie de refresco acre, de sabor próximo ao da tangerina.
Vejo-me entre calor e pó num barulho infernal dentro do Moinho ao lado do potreiro, no qual se fazia beijú... sacos e mais sacos dassa maravilha saída dos milharais. Não sei se a fábrica pertencia ao colégio mas aquele trecho de pasto enfeitado de bolos fecais esverdeados nunca mais me sairia da memória. Era uma vez uma vaca...
Por um motivo qualquer encarregaram-me de cuidar da "Mimosa", Ignoro se tinha nome mas, no interior, todo touro vira "Sansão" e sua digníssima senhora (mesmo bravia) recebe aquele charmoso apodo. De manhãzinha devia dar-lhe capim e feno, trocar a água do cocho e levá-la a passear os 150 metros de "corredor" entre o o prédio e a quinta, até o pasto própriamente dito.
Eu tinha medo daquela "coisa" caipira -- que vivia a chicotear-me com o rabo imundo -- e ela decididamente detestara o menino metido e calado da cidade grande. O percurso era feito com cautela, ambos se vigiando com "o rabo dos olhos", prontos como gatos para o que desse e viesse.
Assim que eu abria o portão do potreiro (convenientemente escondido por trás dele) ela disparava até o centro, virava-se para mim batendo as orelhas de ódio e, mugindo palavrões no idioma bovinal, me dizia:
-- "Ainda te pego de jeito, piá" !
Quase três anos se passaram quando, na curva do Destino, tive que buscar beiju, sol a pino. Saco vazio à mão, balançando despreocupadamente qual lenço de toureiro, adentrei o pasto, caminho inevitável para o moinho.
Ladeando a cerca de arame farpado fui até onde pude pois "Sansão" estava rente a ela. Avancei com cautela pelo centro do potreiro, com Mimosa de costas, rebolando as ancas ao som do vento. Faltava pouco...
Foi quando o touro deu o ar de sua graça e, com especial mugido, avisou a cara-metade:
-- "Lá vem êle, querida" ! A vaca virou a cara estúpida lentamente, boca boçal cheia de capim, conferindo a informação. Arregalou os olhos, girou o resto do corpanzil num salto e, apontando dois espetos afiados na minha direção, arremeteu.
Mandei o saco às favas e corri... para o lado errado, a cerca à esquerda, a "quilômetros" de distância. O cérebro infantil, computador primitivo, ordenou ao resto do corpo que saltasse entre os fios de arame farpado. "Escalar a cerca demoraria muito", concluiu de forma genial.
Franzino, passei "ileso" pelas farpas, descontados os nacos de carne da "batata" das pernas, de um calcanhar e de outra canela. Osso exposto, ("medalha" à mostra por quase um lustro) olhava espantado o sorriso cavalar da bandida. A partir daquela data tomei alergia a leite líquido e, se misturado a café, é dor de barriga instantânea.
Nunca soube se a mesma virou bife ou carne moída -- "boi ralado" ou "picadinho", aqui no Pará -- mas na época tive minha forra ao visitar um matadouro.
Em fila, espremidos num corredorzinho, tinham a cabeçorra encaixada numa "janelinha", na qual levavam certeira marretada. Revirando os olhos, íam para os campos celestiais com a expressão abestalhada de "mas é isso que é a vida"?!
Sempre que vejo uma churrascada imagino que Mimosa tenha terminado seus dias em fatias, sobre brasas, ao menos para compensar meus traumas. Aquela... "vacabunda" !
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COMENTÁRIOS AO TEXTO:
Entramos para o colégio interno em 1961, dois cariocas com roupa de praia num inverno de dez graus. No ano seguinte as Irmãs decidiram fazer um internato misto, com meninas e meninos, e foi "uma festa"... mas durou pouco tempo e, em 1963, já voltávamos ao internato só com meninos.
Não havia futebol no colégio, só o jogo de "queimado" e o pique-bandeira, muito disputado e viril. Para as meninas (do externato, pela manhã) nada de esporte algum, parece que jogavam amarelinha e nós disputávamos jogo de bolinhas de gude, a "búrica".
Caneta-tinteiro até 1963, usando mata-borrão e muita paciência na Caligrafia. Depois surgiu a PARKER, caneta de tinta mais moderna, com um tubinho de borracha (a Blue Pen) ou a do tipo seringa de injeção, a Compactor, com traços dourados e mais elegante.
A de tinta sêca, a famosa BIC, só apareceria por volta de 1965/66.