CRÔNICA PERDIDA: QUESTIONAMENTO
 
 
         Questionando os anos que vivi direto na serra, no sítio, na natureza. Os anos 2000, 2003 e 2004 foram um trecho do caminho em que sempre queria olhar para frente e querendo ser. Ser! Ser apenas eu. Isto é tão difícil quando se está cercado de questionamentos, num caminho sem início e sem fim.
         Com a sensação de estar no fim do caminho, de sem tê-lo caminhado, bem perturbada estava.
         Vim ao Rio que é casa-mãe-companheiro, o que sempre me faz bem. Chego aqui na minha cidade e me sinto em casa.
Aqui é caminho também. E me sentia no meio do caminho... Se der mais um passo, caio no vazio...
         Então paro. Estou parada.
         Ainda. Até.
         Que sei de mim mesma? Que...
Saio. Caminho pelo Catete e pensando se a melhor solução não seria vender o sítio e vir pro Rio morar num pequeno apartamento sozinha e cada filho morando independente cada um no seu próprio espaço, e pensando, racionalizando as questões sem desejo, só razão.    
         Cada um já mostrou que quer vida própria e só os particulares problemas. Cada um, a seu modo, já deixou transparecer isto e eu é que ainda tenho que ajudá-los a se safarem sem isto ficar uma coisa pesada pra eles e para a mãe. Para a mãe, eu, não parece a eles que nada fica pesado ou indesejado.
         Passo perto da Andrade Pertence e vejo um aviso de um apartamento para vender. Fico imaginando eu ali em segurança, próxima aos filhos...  ...e eu quero abandonar a Natureza, minhas plantas, meus bichos, meus amores Chê, Fidel e Neném?
Dentro de um espaço pequeno, eu acostumada a grandes espaços, perto da gente local pra lá e pra cá, numa rua movimentada e pobre?  Vendedores de rua, comércio variado, barulho demais, etc?
         Mas a questão não é nada disso.
         Tenho coragem de dizer só pra mim mesma que eu quero todo mundo junto? A mesma coisa que meu pai falava? Mas quando chegar a idade adulta dos filhos eu mesma não eduquei considerando isso um direito deles? E na hora H?
         Sou tão boba quando trato o sentimento... Na verdade, foi esta criação dada sem se falar diretamente, só dialogando, observações, críticas. Ponderações. Que bobagem lembrar essas coisas se todas já ocorreram, cada um escolheu o seu caminho e se estabeleceu com endereços diferentes e vida própria.
         Droga, porque remôo essas coisas. Não há nada mais a fazer! Também não é remoer, é questionar só, pois tenho me sentido muito sozinha. Ou seja, critico-me que eu não soube construir a minha vida, só pensei no bem dos outros e não me dei conta que, subliminarmente, as mudanças seriam amenas e todos próximos uns dos outros e unidos no mesmo amor.
         No fundo no fundo, sem perceber, eu pensava uma coisa, mas sentia que seríamos sempre uma família. Quando quis o divórcio e o marido saiu porta a fora, finalmente, a felicidade de sentir a liberdade foi de tal ordem libertadora e uma alegria tão plena, submetida vinte e três anos àquele esquema de vida “familiar”, lembra-me bem, tive que andar na Rua Cosme Velho e Laranjeiras, rindo, rindo, o coração se expandindo, eu gargalhava nas calçadas, pra não machucar os filhos, por estar bem sem o pai deles. Eles não poderiam assistir aquela libertação. Meu Deus recuperar o direito de deliberação, de voltar a exercer a minha personalidade perdida! Sentir o ar! A vida!
         Mas não notei que eles sofreram mudança também, e noto hoje, nesta reflexão.
         E hoje meu filho pede uma ajuda, vem aqui em casa.
          Depois me mostra uma foto dele e da irmã pequenininhos, lourinhos, no jardim da nossa vida no Cosme Velho, do tempo dos seus primeiros anos. Eu sempre bati fotos deles. Eu nunca saí nas fotos.
Do tempo em que eu vivia dois tempos. O pai saia pra trabalhar de manhã cedo, e o dia era todo nosso até a hora da volta dele, quando todos nos calávamos e vivíamos o tempo do pai, ou seja, do mau humor, do silêncio, do mutismo e da harmonia, que esta só se processava assim. Foram anos de aprendizagem e dedicação que eu nem trabalhava mais na engenharia, aliás, eu deixara de ser eu mesma, era só mãe amorosa e educadora.
         Esta fotografia mexeu comigo. Muito. Os dois novinhos lindos cabelos longos e louros como ouro. Não sei de onde veio aquele cabelo dourado, se ninguém da família fora louro, todos foram castanhos.
         E reclamei vocês vão ao Catetinho, mexem nas minhas coisas, remexem nos meus livros, bagunçam tudo lá como se aquilo não tivesse valor...
         E veio a compreensão atrasada de anos: eu vivera duas vidas, uma triste com um casamento triste, sem amor; e outra feliz e alegre crescendo junto como o crescimento dos filhos.
 Mas esta de felicidade com os filhos eu esqueci, pois o sofrimento do desencontro do casamento fora marcante demais, e não percebi que os filhos foram fazendo novas cabeças e se afastando, por mais que eu lutasse para termos sempre uma vida melhor.
         Estava sentada na sala fazendo a minha cabeça, enquanto meu  filho usava o computador.
         Quando terminou, reclamei a fotografia: vocês vão esvaziando a minha vida que até esqueço que nós éramos tão felizes! Você não deve tirar as fotos dos álbuns, depois nem sei mais as coisas que aconteceram na minha vida boa!

         Ele reagiu veemente: “Mas a foto é minha!”

         E eu no mesmo tom: “Mas o filho é meu!”