QUEM VÊ CARA, NÃO VÊ DEFICIÊNCIA

O transporte coletivo no estado de São Paulo tem sua qualidade, pelo menos, discutível. Mas, para mim, como grande observador, não vale a pena reclamar. Resolvi enxergar a falha do transporte como grande oportunidade para entender o que se passa na cabeça das pessoas, em relação ao deficiente físico. Sim. É assim que me vejo. Não costumo me esconder atrás da autopiedade. Talvez fosse até mais fácil seguir por essa linha de raciocínio. Muito provavelmente entretanto, não chegaria onde estou hoje, já que a deficiência é, para mim, o desafio que me faz seguir em frente, entendendo a linguagem de meu corpo, e remando para minha evolução, passo a passo.

Vamos à história do coletivo.

Ônibus lotado sempre é sinônimo de stress, principalmente para um povo como o brasileiro, que cultiva o péssimo hábito de quase sempre se atrasar, para qualquer compromisso.

Pessoas acotovelavam- se pelos degraus da porta, enquanto eu, usando meu direito de cidadão, assistia a tudo, sentado no primeiro banco, próximo ao ensurdecedor motor.

Ainda no bairro da Casa Verde, zona norte de São Paulo, sobem duas senhoras. Uma delas, trazia no colo, um bebê, que muito provavalmente ainda não contava um mês de vida. A situação deixou- me de certo modo, preocupado, levando- se em conta a superlotação do veículo. Olhava para trás a fim de identificar um banco vazio que fosse. Nada. A não ser por um jovem esbelto, belíssimo, sobremaneira folgado sentado no primeiro banco...

A outra senhora, aturdida pelo adiantado da hora, indaga ao vento:

- Que horas são?

Como sempre saio de relógio, não me custou nada responder gentilmente:

- Agora são sete e quinze, senhora.

Ainda apavorada, agradeceu, novamente sem dirigir- se a ninguém.

No segundo seguinte, notando que a informação partira de mim, tornou a agradecer. Até aí, tudo conforme a cartilha de boa conduta.

O extraordinário acontece a partir de agora.

Notando que a resposta vinha de alguém forte e bonito (desculpem a modéstia do escritor), a mesma olhou fixamente em meus olhos, intimando:

- Tem uma mulher com criança de colo, você vai ter de levantar.

Por pouco, não perguntei se ela era da polícia. Eu era inocente, juro.

Porém, após respirar profundamente, respondi direta e naturalmente:

- Senhora, eu sou deficiente físico.

Completamente desconcertada e sem saber onde enfiar o rosto, que avermelhara- se completamente, justifica- se espetacularmente:

- Desculpa! É que você tem a carinha tão boa...

Sensacional. Independentemente dos fatos que ainda estavam por suceder naquele dia, ele estava ganho. Recordo- me que ria sozinho, em qualquer canto.

Analisando posteriormente o fato, pensei na superficialidade com que as pessoas se olham e se tratam.

Alguém que julgue o semelhante pela aparência, jamais chegará a lugar algum no decorrer da vida.

O mundo atual preza pelo culto externo, fechando- se no cadinho frio do preconceito e da intolerância. O pensamento humano anda aos cacos, buscando na pele, o que precisa encontrar na essência, na alma.

Toda pessoa tem uma essência, uma vontade, um objetivo, seja ela deficiente ou não. Meus atributos faciais são completamente incapazes de anular minha deficiência, assim como minha deficiência é incapaz de frear minhas vontades, porque bonito ou feio, eu não sou apenas esse corpo limitado. Sou muito mais que isso. Sou uma essência, um ser humano, que busca vencer seus limites, e porque não dizer, os limites de uma sociedade moralmente deficiente.

Mas não há como negar. Aquele dia foi especialmente engraçado.

Não posso fazer nada. A beleza está nos olhos de quem vê.Quem vê cara, não vê deficiência.Ninguém mandou que eu nascesse tão lindo. Azar o meu.

Sortuda mesmo deve ser a Susan Boyle. Além de não pagar a passagem, ela deve ir sentadinha, sem ser incomodada, e ainda descer pela frente.

Marcello Santos
Enviado por Marcello Santos em 15/05/2009
Reeditado em 17/10/2010
Código do texto: T1596516
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