Ilusão gastronômica.
Depois de uma vida de grandes conquistas, em que o trabalho árduo proporcionou conhecer vários países, varias culturas, em especial a culinária de cada um deles, Rafael enfrentou um difícil processo de separação com sua ex-esposa Ana.
A separação não só lhe tirou os bens, como uns dos maiores prazeres de sua vida: a alta gastronomia.
Rafael, durante os anos em que manteve o relacionamento com Ana, havia se apaixonado pela culinária dos países em que teve a oportunidade de visitar. Na Alemanha, além da escaldante cerveja, o “bife tartar”, o “chucrute”, o “eisbein”, e até mesmo a “páprica”. Na Espanha, a “paella”, a a “tortilha”, o “puchero”, e sobretudo o “prosciutto crudo” ainda desacompanhado. Em Portugal, a “bacalhoada”, o bacalhau ao forno, ao molho, e o bacalhau ainda sem dessalgar na água e no leite.
Há poucos meses da separação, já entediado da vida promíscua que fora obrigado a aderir, em razão de sua condição de solteiro, e já farto da gastronomia americana, repleta da hambúrgueres e hot-dogs, bares, petiscos, e noites adentro, resolveu se reconciliar com a cozinha dos países mais aprimorados e patrocinar um jantar para seus amigos.
Thiago, também apaixonado pelo desafio da cozinha experimental, foi o único que aceitou o convite. Ele, na verdade, era o único dos amigos que também lhe restara depois da separação. O único que aceitaria o convite nas condições propostas, em que o cardápio fosse elaborado a partir de uma visita precedente ao supermercado.
De comum acordo, decidiram comer o melhor prato, escolhido a dedo, e sem acompanhamentos alcoólicos, para quebrar a rotina inerente da vida de descasados.
Então, se dirigiram ao supermercado. Lá chegando, de frente às gôndolas das carnes e congelados, resolveram optar pela simplicidade da gastronomia brasileira e assar uma carne de primeira, acompanhado de um risoto de palmitos, mas logo desistiram quando se encantaram pela oportunidade de comer uma “paella” acompanha de um “filet cambucu” ao forno.
O supermercado escolhido, no entanto, não oferecia ingredientes à altura das exigências daqueles estômagos tão requintados, “filet cambucu”, “pescada irlandesa”. O único peixe à disposição que quase despertou o apetite em ambos foi a “sardinha portuguesa”, mas logo decidiram fazer um “founde de queijo”, o que causou inevitavelmente um clima romântico para o jantar, mas estariam sem acompanhantes, e, mesmo assim, resolveram quebrar o protocolo sabendo que nada além de um bom jantar seria apreciado. Foi quando passaram a escolher os queijos, e foram de “emental”, “gruryere”, “itálico” até ao ousado “roquefort”, que certamente dividiria a história da culinária em dois momentos: F.A.R. e F.D.R. Isto é, o “founde antes do roquefort” e o “founde depois do roquefort”. Os vinhos, nada mais eram exigência do próprio prato, o branco para receita e o tinto para continuar quebrando o protocolo como já haviam decidido desde o início ao elegerem o “founde” desacompanhados.
A escolha dos vinhos, entretanto, impôs uma disputa de classes. Nem um nem outro admitiriam a utilização de um vinho de última classe, ou até mesmo os nacionais. O supermercado, apesar de sua condição de duas estrelas, possuía uma ótima adega. Então, não abriram mão dos portugueses e dos espanhóis e até discutiram pelos chilenos. Por fim, decidiram que levariam “Casileiro Del Diablo” e “Casal Garcia”, cada um escolhido por um deles, para que a receita não decepcionasse a nenhum dos dois. Nem chegaram a colocá-los no carrinho.
Pareciam bebes recém nascidos nos cuidadosos braços. Cada um com o seu.
Quando ainda se dirigiam para o caixa se deram conta que o dinheiro que juntos possuíam, Rafael que havia perdido tudo depois da separação e Thiago recém colocado no mercado de trabalho, não cobria metade das suas escolhas. Sem nem mesmo haver quebra de braço, diante da evidência constatada sem nenhuma palavra e apenas com o entreolhar e um golpe de vista no carrinho, um seguido do outro, quase que imediatamente, optaram pela escolha de um prato italiano mais convencional:
- Macarronada!!! Exclamaram, já que a conta alcançaria o quíntuplo do couvert de qualquer restaurante da região.
Ainda sim, mesmo com a macarronada que sem dúvida seria de pasta legítima italiana, a conta ultrapassaria a soma dos vinhos que nenhum deles estaria disposto a desistir, depois de uma hora e meia de grandes conflitos e demonstração acerca do elevado conhecimento dos vinhos pelos reconhecidos enólogos que se intitulavam. Então, de uma vez por todas, decidiram ir logo para casa, comprar massa pronta para “pizza frita”, “mussarela” e “molho de tomate”. Assim não se distanciariam da Itália e não perderiam a pose do jantar de classe que resolveram dar a si mesmos.
Embebedaram-se como se fossem reis da França e da Espanha, mas comeram mal como Americanos em “fast-food”, e no dia seguinte propalaram que tiveram uma noite de competição gastronômica, mas não passavam de emergentes agora à beira da bancarrota.
O álcool, na verdade, é que era o prato principal e fora escolhido inconscientemente; o vinho era apenas o fluído necessário para conduzir o álcool de maneira mais requintada e proporcionar a conexão com a ilusão de sentir as sensações daquilo que já não mais podiam pagar.
MÁRCIO GUSTAVO PEREIRA LIMA, com a colaboração insubstituível de THIAGO NICOLAS IMPARATO, no preparo das pizzas.