Neve Rubra ou Colocando Ordem na Desordem
Neve Rubra
ou
Colocando Ordem na Desordem
suzabarbi@hotmail.com
Era de matar de vergonha que Heleninha não entendesse que seu namoro ia de mal a pior.
Fábio não era homem de se apegar a uma só.
Mulherengo de pai e avô, não conseguia ao menos fingir que não olhava e se interessava pelas amigas mais próximas de Heleninha.
O constrangimento era tanto, que elas resolveram dar um tempo.
Enquanto Heleninha estivesse com ele, as amigas se afastariam.
Menos uma.
A mais amiga.
Vanessa.
Enquanto Fábio aprontava, Heleninha chorava.
O quê podia fazer?
Estava apaixonada!
Vanessa, sofrendo por vê-la naquele estado, fazia de tudo para animá-la.
- Quem sabe ele não melhora?
Mas Heleninha sabia que o peste nunca deixaria de ser galinha.
E mesmo assim não largava o osso.
Um dia, a amiga propôs algo inusitado.
Tinha visitado um terreiro de candomblé.
A Mãe de Santo acertou tudo da vida dela.
Até falou de Heleninha!
“Uma grande amiga”, que deveria ir até lá para “endireitar o que estava torto”.
E torto ali, só podia ser o Fábio.
Heleninha pensou muito.
Teve medo.
Era católica.
Fervorosa de Santa Terezinha.
Não ficaria bem ir a um terreiro de candomblé.
Vanessa segurou-a pelos ombros e soltou um alto e firme:
- Então fique com esse galinha te pondo chifres até no esôfago!
Chifres na cabeça tudo bem, mas no esôfago...
Lá foram elas ver a tal Mãe de Santo.
O lugar era muito bem arrumado.
Homens de branco rodeavam uma mulher dos seus quarenta e poucos anos, vestida com uma saia rodada, túnica branca e colares coloridos.
Os atabaques pararam quando as duas entraram.
Heleninha grudou na mão da amiga.
Andaram até postarem-se diante da Mãe de Santo.
Heleninha suava frio quando a Mãe, ali chamada de Mãezinha, estendeu os braços para ela, dizendo:
- A fia tem que movimentá pra não perdê minino branquelo.
Nunca tinha pensado em Fábio como “menino”, mas gostou do “branquelo”.
Prometendo jogar flores pra Iemanjá, usar amarelo nas segundas-feiras, comer peixe assado nas terças, esconder a espinha num lugar verde nas quartas, vestir saia rodada nas quintas, não beijar o “branquelo” durante uma semana, guardar três fios de cabelo dele dentro da calcinha, dependurar sua escova de dente de cabeça pra baixo, ufa..., Heleninha saiu dali com uma incumbência maior.
Servir um drink para o Fábio usando a “Neve Rubra”.
- Mas que diabo é “Neve Rubra”?
- Volte daqui a sete dias e você saberá.
Mãezinha não deu mais nenhuma palavra.
Uma semana depois, Heleninha e Vanessa voltavam ao terreiro.
Saíram de lá com um isopor cheio de pedrinhas de gelo vermelhas e com a tarefa de colocá-las em qualquer bebida que o “branquelo” fosse tomar na noite de sexta-feira.
- E se for veneno? Perguntou uma assustada Heleninha.
- Acho que nem tomando veneno o Fábio para de galinhar...
Na sexta-feira, Heleninha, com os três fios de cabelo de Fábio na calcinha, é toda amor para recebê-lo.
Vai logo lhe preparando um uísque.
Dentro, quatro pedrinhas vermelhas.
- Ué, que gelo mais esquisito é esse?
- Gelos decorativos, Fábio. Muito em moda hoje em dia.
- Tem gosto de quê?
- De nada, Fábio. De gelo!
- Vamos fazer um brinde então!
Por essa ela não esperava.
Sai correndo da sala e liga para a amiga:
- Ele quer que eu tome um uísque com a “Neve Rubra”!
- Ai, ai, ai! Tenho que ligar pra Mãezinha... Não sei se pode.
- Minha Nossa Senhora, o quê vou fazer agora?
- Não coloca Nossa Senhora nisso! Ela não entra em terreiro!
- Quintal, Vanessa. Quintal! Mãezinha já falou que é quin-tal!
- Peraí! Vou ligar. Mas não coloca nada na boca enquanto eu não chamar!
Heleninha foi pra sala fingindo uma calma e-nor-me.
- Você tá estranha hoje. O que houve?
- Houve? Como assim, houve? Houve nada. Aliás, houve. Houve que estou doidinha pra você experimentar o gelinho novo.
- Isso é uma proposta?
- Não, Fábio! Experimentar com o uísque.
- Com o uísque? Sua danadinha! Não sabia que você gostava dessas coisas não. Já estou até achando que esses gelinhos vão fazer a nossa noite ficar bem quente...
Dizendo isso, Fábio caiu sobre ela com as pedrinhas na mão.
Quando Vanessa ligou, o sofá de Heleninha era uma mancha só.
Molhada e vermelha.
Não tinha sobrado nem uma “Neve Rubra” pra contar história.
Sabendo do acontecido, Mãezinha ligava todos os dias.
Preocupada que só.
A “Neve Rubra” era para ser tomada e não para ser usada!
Não podia garantir serviços desse jeito.
E agora?
Nem ela poderia saber o efeito da “Neve Rubra” usada de maneira tão... tão...
Tão inadequada!
Para surpresa de Heleninha, Fábio estava um colosso.
Mais atencioso, amoroso, carinhoso e muitos outros “osos” mais.
Aliás, “osos” demais para ela.
E quanto mais ele se derretia para ela, mais Heleninha implicava.
Vanessa intrometeu:
- Mas era tudo que você queria!
- Mas tá demais. E tudo que é demais cansa. Não aguento mais o Fábio dizer que sou a mulher da vida dele.
A amiga não conseguia mais entender Heleninha.
Quando o grude de Fábio chegou à beira do insuportável, Heleninha resolveu terminar tudo.
Não contava com o escândalo que ele fez!
Chorava, dizia querer morrer, ela era a mulher da vida dele e, quando sentiu que nada surtia efeito, ajoelhou-se aos pés de Heleninha e pediu clemência.
Clemência????
Heleninha não podia acreditar naquela novela mexicana.
Ainda mais partindo do Fábio.
Resolveu colocar fim naquilo ali mesmo.
Com ele aos prantos e grudado nos sapatos dela.
Os dias que se seguiram foram terríveis.
Ele ligava, internetava, ficava horas na porta do apartamento de Heleninha.
Começou a emagrecer.
A barba crescia.
Heleninha já não sabia o que fazer, quando se lembrou de Mãezinha.
- Eu disse pra tomar. Não pra usar!
Mãezinha estava muito brava.
- Mas Mãezinha...
- Vou ver o que posso fazer.
- Mas Mãezinha...
- Cala a boca, Heleninha!
Mãezinha estava mesmo muito brava.
Enquanto Mãezinha cuidava para que as coisas voltassem ao normal, Heleninha tentava tirar a mancha vermelha do sofá, onde estivera experimentando, digamos assim, a “Neve Rubra”.
Nada!
Aquela cor cobria o estofado novinho em folha.
Não tinha produto que removesse aquele escândalo de lá!
Tentou cobrir com uma manta os borrões vermelhos, mas eles insistiam em estar por toda parte do sofá.
Não tinha como disfarçar.
E não havia quem não os reparasse.
Quando já estava pensando em trocar o tecido do dito cujo, Mãezinha aparece em seu apartamento.
Despida do turbante e dos trajes brancos, Heleninha quase não a reconheceu.
Na sua frente uma jovem e bela senhora.
De calças jeans e blusa justa.
Estava mais pra sambista do que pra Mãe de Santo.
Obrigou Heleninha a se desfazer do sofá imediatamente.
Heleninha negou.
Mãezinha tirou um pequeno canivete de dentro da bolsa e passou a retalhar o alvo vermelho sem piedade, sob o olhar incrédulo de Heleninha, que gritava:
- Isso me custou uma fortuna!!!
- Vai te custar outra se você não jogar essa porcaria fora! Quem mandou usar aquilo que era para tomar?
Depois do sofá em trapos, nada mais Heleninha tinha a fazer senão jogá-lo no lixo.
Amanheceu com o telefone tocando.
Era Fábio.
- E aí, gata! Que tal um cineminha hoje? Podia chamar aquela mina, sua amiga.
- Que mina, ô Fábio?
- Aquele avião. Como é que ela se chama mesmo?
- Ô Fábio, vamos fazer o seguinte? Procura a mina ou o avião, como você achar melhor, e vá com ela para Marte! Quem sabe lá não está passando O Retorno da Múmia?
Desligou o telefone fula da vida.
Mas uma coisa começou a incomodá-la.
E não sabia o que era.
Quando soube, deu um grito.
Fábio voltara a ser o que era.
E ela continuava achando ele um chato.
A paixão tinha ido embora, não sabia como.
Vibrou.
Procurou Mãezinha.
Conversaram horas a fio.
Mãezinha fazia anotações e dizia ter feito novas descobertas em suas mandingas.
Estava pronta para preparar novas receitas.
Heleninha se entusiasmou.
Afinal, tinha dado certo com ela.
Por que não daria também para outras pessoas?
Dia após dia, mais e mais mulheres davam aos seus companheiros um banho, digamos assim, da “Neve Rubra”.
Coisas fantásticas aconteciam: casais mais apaixonados, outros se separando, amigas se reencontrando, homens se desejando.
E quando Fábio quis com Heleninha se casar, ela sorrindo lhe respondeu:
- A vida é curta, fofo! Tenha um novo caso!
Meses depois, quando Vanessa recorreu à Mãezinha para uma consulta de amor, qual não foi sua surpresa ao ver Heleninha vestida de branco, em meio a uma roda de lindos jovens, que lhe sorriam.
Maliciosamente, claro.
Ela parecia feliz da vida.
Felicidade tão grande quanto o freezer no fundo do terreiro.
Do terreiro não.
Do quintal.
Desafio Literário
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