Côncavo e convexo
- Do côncavo e o convexo / Assim é nosso amor...
- Roberto Carlos!
Deixou de passar os produtos do carrinho para o balcão, olhou para trás, garota de saias engraçadas segurando três caixas de leite e um pacotinho de alface. Tão antiga e tão incomodamente romântica, a canção não poderia integrar o repertório de quem teria menos de vinte anos, trajes conotando a imagem de estudante desleixada.
Sorriu interiormente, pensando ouvir vozes.
- Cada parte de nós / Tem a forma ideal / Quando juntas estão...
- Coincidência total...
Terminou de passar as compras, passou um cheque para trinta dias, recolheu as sacolas e encaminhou-se para a saída, buscando as chaves do carro no bolso cheio de papéis, documentos, dinheiro e rascunhos de música. Fã de Roberto Carlos, compunha desde tempos distantes, mais pela necessidade de alimentar esperanças de encontrar a mulher. A procura se estendeu. Já beirava os cinqüenta anos.
Uma namorada gostava de bailes sertanejos aos fins de semana. A outra passava o dia cantando Zeca Pagodinho, voltando a faixa do disco que exaltava a vadiagem, trocando o “vai” por “vou”. A terceira detestava música – razão pela qual a namorou apenas cinco semanas. A quarta, fã confessa de Sinatra. A quinta delirava por Legião Urbana...
Eclético, não se incomodava com as preferências musicais, religiosas ou ideológicas, mas ainda não descobrira quem reconhecesse a grandiosidade do rei da música brasileira contemporânea.
Desativou o alarme, jogou as sacolas no porta-malas, abriu a porta, engatou a ré antes de ligar o carro e, livrando-se cautelosamente do estacionamento apinhado, lembrou da intervenção da menina complementando “Côncavo e convexo”. Talvez se tivesse falado algo, se apresentado, deixado o telefone ou pegado o endereço eletrônico... O que falariam se o vissem transitando com uma garota, menos de vinte anos? Assédio? Pedofilia? Imoralidade?
Rechaçava a idéia de abordá-la. Quanto tempo mais ficaria sozinho? Mais três ou quatro? Décadas?
Preparava-se para finalmente abandonar o estacionamento do supermercado quando a garota estacou, sacola de caixas de leite na mão direta e o pacote de alface na esquerda. Ele parou, cedeu-lhe passagem. Desfilou na frente do carro, olhando para o chão e caminhando desleixadamente. Olhou aquelas saias berrantes, acelerou um pouco. Desligou o veículo.
- Nosso amor é demais / E quando amor se faz / Tudo é bem mais bonito.
- Nele a gente se dá / Muito mais do que está / E o que não está escrito.
Abriu a porta do carro, caminhou para ela.
- Estou indo para a Vila Prudenciana. Posso te dar uma carona, se você quiser. Arrebatou o leite, esbanjou um sorriso tímido e incomum.
Ela titubeou, ele incomodou-se. Recusaria o convite? Mais anos procurando um novo amor?
- O único problema, disse ela, olhos tímidos, é que moro no Jardim Europa.
Devolveria a sacola à dona.
- Se você não tiver pressa nem se incomodar, pode me deixar lá. Pago sua gentileza com café e pão de queijo. Mas não pode ter pressa, pois demoro para fazer a massa...
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 14 de maio de 2009.