O CARÃO
À noite, após o jantar, meu pai reunia os filhos para contar historias e dar lições de vida. Como devíamos proceder em nossos passos pelo mundo, orientado-nos e formando o nosso caráter. Ficávamos atentos às suas narrativas, estórias e ensinamentos.
Não era poeta mas gostava de poesias. Aqui e ali declamava um soneto e relatava romances e episódios literários. Eram aulas especialíssimas. Declamou, certa vez, o soneto “Os cisnes”, de Julio Salusses, que ainda hoje guardo de cor:
A vida, manso lago azul algumas
Vezes, algumas vezes mar fremente,
Tem sido para nós constantemente
Um lago azul sem ondas, sem espumas,
Sobre ele, quando, desfazendo as brumas
Matinais, rompe um sol vermelho e quente,
Nós dois vagamos indolentemente,
Como dois cisnes de alvacentas plumas.
Um dia um cisne morrerá, por certo:
Quando chegar esse momento incerto,
No lago, onde talvez a água se tisne,
Que o cisne vivo, cheio de saudade,
Nunca mais cante, nem sozinho nade,
Nem nade nunca ao lado de outro cisne!
E explicava seu conteúdo. Dizia poesias do meu avô e contava suas tiradas mordazes, espirituosas e interessante. Aproveitava o tempo restante para cobrar resultados nos estudos, pedindo para ver o boletim de cada um e fazer elogios ou reclamações. Certa vez, eufórico, eu mostrei o meu boletim, com boas notas em quase todas as matérias. Varias notas dez, e um nove em português. Em vez de elogios ouvi o seu comentário seco e duro:
- Se tivesse estudado mais, teria obtido dez em tudo! Lembre-se, Didinho, você me prometeu um boletim só com nota dez! - e concluiu: - Ninguém é obrigado a prometer, mas se prometer é obrigado a cumprir.
Guardei a lição e passei a ser cuidadoso com as minhas promessas, abrindo exceção, apenas, ao Amor, promessa única que faço sem cautela, só pela volúpia de prometer:
AMO
Amo o cigarro, que me pende à boca,
amo a dose de uísque que me agita,
amo os olhos do amor quando me fita,
amo a paixão, quando a demora é pouca.
Amo a vaga noturna, ardente e louca.
Amo o raio de sol que me visita.
Amo a paz que apascenta o cenobita.
Amo a saudade, quando muda e mouca.
Amo a chuva que corre na vidraça,
transparecendo vultos, por pirraça,
amo o futuro da mulher presente.
Amo os braços do abraço que me abraça.
Eu amo a vida. E, enquanto a vida passa,
amo abstrata e indefinidamente...
Ou de me permitir vivê-lo a cada novo instante, como se nunca houvera amado dantes ou não pudesse, nunca, amar depois:
O AMOR
O amor é fogo que me queima e arde
(e às vezes queima tanto que dá medo!)
Executor das tramas de um segredo,
veraz nos versos em que faz alarde.
Fera ferida, indômito, covarde,
quase infinito, quando chega cedo,
e se transforma em formas de brinquedo
quase sem tempo, quando chega tarde.
Quando noturno, dele sou cativo.
Amo a fêmea vulgar, o vulto esquivo,
o amor, em mim, figura-se incessante.
Nas manhãs me renova e dá motivo
para viver. E a cada dia vivo
a vontade de amar a cada instante.
Depois daquele nove, minha mãe passou a vigiar minhas notas e a relembrar o carão do meu pai. Um dia, ela me deu uma bronca porque tirei o segundo lugar no exame de admissão:
- Em primeiro lugar, você não era para ter sido o segundo. Em segundo, eu quero e preciso que você seja sempre o primeiro nas graças de Deus. Ele já fez a Sua parte nos dando a vida. Agora cabe a você, em primeiro lugar, lutar por ela!
Calei-me, olhando-a nos olhos de continuada prece, às suas mão marianas de seguidos rosários pedi bênçãos, e me prometi ser o filho de seus maternais desejos. Cumpri com a minha promessa e, agora, sem mais poder me ver na luz de seus olhos ausentes, repito-me num canto de saudade amorosa, nas proximidades do Dia a ela dedicado:
MÃE
Trazes do tempo o despertar latente
em teu ventre plasmático e fecundo.
Trazes o carma, a gênese, a semente
com que concebes vida ao próprio mundo.
Trazes o dom da luz, a chama ardente
do amor que vem de Deus, dele oriundo,
que nos conduz, segundo por segundo,
os passos, como fada onipresente.
Queria me abrigar em teu regaço
neste dia tão teu, dar-te um abraço,
brincar contigo em vívido escarcéu.
Mas se és distante, muito além do espaço
do alcance dos meus braços, eu te faço
este soneto, ó Mãe que estás no céu!
Odir, de passagem
À noite, após o jantar, meu pai reunia os filhos para contar historias e dar lições de vida. Como devíamos proceder em nossos passos pelo mundo, orientado-nos e formando o nosso caráter. Ficávamos atentos às suas narrativas, estórias e ensinamentos.
Não era poeta mas gostava de poesias. Aqui e ali declamava um soneto e relatava romances e episódios literários. Eram aulas especialíssimas. Declamou, certa vez, o soneto “Os cisnes”, de Julio Salusses, que ainda hoje guardo de cor:
A vida, manso lago azul algumas
Vezes, algumas vezes mar fremente,
Tem sido para nós constantemente
Um lago azul sem ondas, sem espumas,
Sobre ele, quando, desfazendo as brumas
Matinais, rompe um sol vermelho e quente,
Nós dois vagamos indolentemente,
Como dois cisnes de alvacentas plumas.
Um dia um cisne morrerá, por certo:
Quando chegar esse momento incerto,
No lago, onde talvez a água se tisne,
Que o cisne vivo, cheio de saudade,
Nunca mais cante, nem sozinho nade,
Nem nade nunca ao lado de outro cisne!
E explicava seu conteúdo. Dizia poesias do meu avô e contava suas tiradas mordazes, espirituosas e interessante. Aproveitava o tempo restante para cobrar resultados nos estudos, pedindo para ver o boletim de cada um e fazer elogios ou reclamações. Certa vez, eufórico, eu mostrei o meu boletim, com boas notas em quase todas as matérias. Varias notas dez, e um nove em português. Em vez de elogios ouvi o seu comentário seco e duro:
- Se tivesse estudado mais, teria obtido dez em tudo! Lembre-se, Didinho, você me prometeu um boletim só com nota dez! - e concluiu: - Ninguém é obrigado a prometer, mas se prometer é obrigado a cumprir.
Guardei a lição e passei a ser cuidadoso com as minhas promessas, abrindo exceção, apenas, ao Amor, promessa única que faço sem cautela, só pela volúpia de prometer:
AMO
Amo o cigarro, que me pende à boca,
amo a dose de uísque que me agita,
amo os olhos do amor quando me fita,
amo a paixão, quando a demora é pouca.
Amo a vaga noturna, ardente e louca.
Amo o raio de sol que me visita.
Amo a paz que apascenta o cenobita.
Amo a saudade, quando muda e mouca.
Amo a chuva que corre na vidraça,
transparecendo vultos, por pirraça,
amo o futuro da mulher presente.
Amo os braços do abraço que me abraça.
Eu amo a vida. E, enquanto a vida passa,
amo abstrata e indefinidamente...
Ou de me permitir vivê-lo a cada novo instante, como se nunca houvera amado dantes ou não pudesse, nunca, amar depois:
O AMOR
O amor é fogo que me queima e arde
(e às vezes queima tanto que dá medo!)
Executor das tramas de um segredo,
veraz nos versos em que faz alarde.
Fera ferida, indômito, covarde,
quase infinito, quando chega cedo,
e se transforma em formas de brinquedo
quase sem tempo, quando chega tarde.
Quando noturno, dele sou cativo.
Amo a fêmea vulgar, o vulto esquivo,
o amor, em mim, figura-se incessante.
Nas manhãs me renova e dá motivo
para viver. E a cada dia vivo
a vontade de amar a cada instante.
Depois daquele nove, minha mãe passou a vigiar minhas notas e a relembrar o carão do meu pai. Um dia, ela me deu uma bronca porque tirei o segundo lugar no exame de admissão:
- Em primeiro lugar, você não era para ter sido o segundo. Em segundo, eu quero e preciso que você seja sempre o primeiro nas graças de Deus. Ele já fez a Sua parte nos dando a vida. Agora cabe a você, em primeiro lugar, lutar por ela!
Calei-me, olhando-a nos olhos de continuada prece, às suas mão marianas de seguidos rosários pedi bênçãos, e me prometi ser o filho de seus maternais desejos. Cumpri com a minha promessa e, agora, sem mais poder me ver na luz de seus olhos ausentes, repito-me num canto de saudade amorosa, nas proximidades do Dia a ela dedicado:
MÃE
Trazes do tempo o despertar latente
em teu ventre plasmático e fecundo.
Trazes o carma, a gênese, a semente
com que concebes vida ao próprio mundo.
Trazes o dom da luz, a chama ardente
do amor que vem de Deus, dele oriundo,
que nos conduz, segundo por segundo,
os passos, como fada onipresente.
Queria me abrigar em teu regaço
neste dia tão teu, dar-te um abraço,
brincar contigo em vívido escarcéu.
Mas se és distante, muito além do espaço
do alcance dos meus braços, eu te faço
este soneto, ó Mãe que estás no céu!
Odir, de passagem