LEILÃO DE "URUBU"

LEILÃO DE "URUBU"

Nascido e criado num morro carioca -- favela de vielas apertadas, barracos escuros e vida sem nenhum horizonte -- de repente me vi jogado numa planície sem fim, com trechos de mata fechada e água por (quase) todos os lados.

Fatalista por índole, tirou-me o Destino da selva de pedra para atirar-me no que restou de outra selva, a majestosa floresta amazônica.

Com 30 anos bem vividos, troquei a contragôsto as areias (e o voleibol) da praia de Copacabana por um barracão na mata, sem energia elétrica, chuveiro, TV nem geladeira e tendo que dormir ("com as galinhas") às 19 ou 20 horas.

Eu mais meu irmão gêmeo Renato tivemos que aprender a fazer "cauvão" no sítio que a família comprou. Plantávamos boa parte do que comíamos e findamos trocando frutas por açúcar, sal, querosene e coisas do gênero.

A "brincadeira" durou quase três anos, até que largamos tudo e debandamos... primeiro, para a cidadezinha mais próxima; depois, rumo a Capital, Belém do Pará.

Ficou-nos daqueles breves tempos histórias e estórias que beiram o absurdo, mais parecem anedotas, além de momentos por vezes dramáticos mas sempre fascinantes do choque entre Homem e Natureza.

Minha experiência anterior com futebol de praia motivou-me iniciar um time infantil nas redondezas, com garotos que andavam de 2 a 4 km para treinarem sábados à tarde, resultando disso vários torneios locais e, adiante, nos vilarejos próximos.

Graças a contatos meus com a Prefeitura, pela primeira vez na vida do sítio surgiu um ônibus naquelas êrmas paragens.

paraense é, definitivamente, um povo festeiro... por mais carente e isolado que o lugarejo seja terá, duas vezes ao ano, a sua festinha (ou festança). Os "apreparos" começam mês e meio antes, com os Ofícios manuscritos entregues aos times principais das vilas vizinhas que, na verdade, pagam entre si as visitas anteriores que os ora convidantes fizeram. (Explica-se: vitoriosos ou derrotados, ficam todos para a festas própriamente dita, "varando" noite adentro.)

Nesse ínterim, renovam a "sede" -- o barracão da Festa -- pintando tudo e trocando a palha do teto. Por fim, capina-se o local em volta e aprontam a Capelinha ou o altar para a única Missa do ano.

No dia da festa, geralmente em homenagem a Santa-padroeira da localidade, tudo vem de barco: gêlo, bebidas, carnes para churrasco, o "sonoro" -- caso não haja estradas (os "ramais") -- e boa parte dos "atletas" convidados, a maioria "barqueiros'.

Foi numa destas ocasiões que acabei leiloeiro, "intimado" pela beata do lugar, dona Maria Guedes. Pregão de miudezas, perfumes e louças entre outros, arrematados em pouco tempo.

Passava da meia-noite e, no barracão lotado, de comer só havia farofa... tudo o mais desaparecera por entre os dentes da rapaziada indócil.

Eis que dona Maria me surge com um "urubuzinho", frango preto e esquálido, pouco mais que um pinto. Recusei-me a levá-lo a leilão. Que ela desse um jeito de prepará-lo... afinal, meu belo nome de "leiloeiro" estava em jôgo.

Quarenta minutos depois, entretomates e pimentões, lá estava a pobre ave canibalizada para prazer & gula de quem a arrematasse.

Chamei "Cacá" num canto e segredei-lhe que fizesse uns lances.

-- Mas eu 'tô "duro", seu "Nato"... bebi a "grana" toda !

Expliquei-lhe vagarosamente que isso era um estratagema para subir o preço final do "pombinho". "Cacá", na realidade Dorivaldo Bandeira, era de uma família de maranhenses que viviam da pesca em barcos e também servindo em empresas congêneres. Êle trabalhava conosco no sítio, nas tarefas mais pesadas.

Ao lhe perguntar certa vez porque tratava seus irmãos por "compadres", retrucou:

-- "É porque um compadre ajuda o outro e, um irmão, não"!

Voltando à festa... microfone na mão -- meia Amazônia ouvindo floresta afora -- comecei o leilão mexendo com os brios dos times presentes. A moçada, até então sonolenta, despertou e os lances pipocaram qual "bombinhas" em noite de São João.

Contudo, havia algo estranho: boa parte das ofertas vinha de jogadores do "Vasquinho FC", do qual a família Bandeira representava meio time.

Comecei a suar frio! Sorriso amarelo no rosto, sabia que o pessoal não tinha dinheiro para arrebatar o brinde e o preço final já estava "nas alturas", enquanto despencavam sobre minha cabeça "bombas" em formade lances do nosso time.

No torneio de futebol, à tarde, o "time da casa" perdera a partida final para o da localidade vizinha e agora era hora da desforra.

"Cacá" havia espalhado meu "segredo" para o time inteiro... a cada lance vencido pelo "Vasquinho FC" seguiam-se urros, palmas e o tilintar de copos e garrrafas. Os "adversários", unidos numa só mesa, sentiam-se agastados.

Foi então que, após cochichos, juntaram-se as carteiras retirando delas os poucos "trocados" e a rapaziada deu seu derradeiro lance.

O frangote descarnado e grelhado atingira a fabulosa quantia de 120 mil cruzeiros da época, algo em tôrno de 80 reais hoje, o que para um ribeirinho da Amazônia é uma pequena fortuna.

No breve silêncio que se seguiu aproveitei para encerrar o leilão, em meio à algazarra dos "bi-campeões" e ouvindo, ao fundo, a voz esganiçada do 'melado" ponta-esquerda Benício dando mais um lance.

Nôvo na área, por um bom tempo a caboclada não perdoou a minha "traição", supondo êles que não precisariam pagar o frango, já que eram os donos da festa.

Nossa vivência & convivência no time principal do "Vasquinho FC" nos daria outros tantos "causos" que, um belo dia, transporei para o papel.

"NATO" AZEVEDO