Fredy

Tenho saudades do animal.

Já se passaram talvez três anos, não sei bem ao certo, e continuo a lembrar-me dele todos os dias. Aliás, quando chego a casa, bastante tarde normalmente, quase sempre abro a porta da rua com cuidado para que ele não fuja.

Era um hábito que ele tinha, mal apanhava a porta aberta fugia e depois aparecia quando lhe apetecia, normalmente todo sujo, só Deus sabia por onde tinha andado. Adorava andar na rua, e nós não o deixávamos por causa do trânsito, com medo que fosse atropelado, um dia não o conseguimos evitar.

Há cerca de uns nove ou dez anos, mais coisa menos coisa, não sei precisar a data ao certo, o meu filho apareceu-me numa tarde cá em casa com dois cãezinhos pequenos, tinham ambos dois meses e eram irmãos. Eram da mãe de um coleguita de escola e segundo ela podíamos escolher o que mais gostássemos.

Eram os dois bonitinhos, mas um deles era demasiado espevitado e barulhento, pelo que nos decidimos pelo mais sossegado. Mais tarde entendemos que não foi a melhor opção, mas depois falo nisso.

Era arraçado de pastor alemão, pensamos nós, devido às feições que tinha, a cabeça dele tinha muito a ver com os cães dessa raça.

Tratamos dele com todo o carinho e amor. Compramos brinquedos, vacinamo-lo, fizemos tudo para que o bicho se sentisse feliz e ele em troca brindava-nos com aquelas traquinices próprias da idade, que nos enchia de alegria.

É claro que dava muito trabalho, sujava muito, e nesse aspecto a minha mulher foi a maior vitima, todos nós de uma maneira ou doutra fugíamos a esse trabalho, ela bem se lamentava mas acabava sempre por sobrar para si.

Em muitas situações ficávamos com a sensação que era bastante esperto, inteligente até, noutras nem por isso.

Lembro-me que ainda bebezinho empoleirava-se na borda do sofá e gemia para que o pusessem em cima, e fazia o mesmo quando queria ir para o chão, só que passados anos, já um matulão ás vezes fazia o mesmo, era um grande mimalho e como as pessoas, queria era colinho.

De vez em quando éramos surpreendidos com situações um pouco desagradáveis, lembro-me de num aniversário, penso que da minha filha, a minha mulher colocou um bolo no centro da mesa que estava a preparar e quando deu por ela ele tinha comido uma grande porção do mesmo. Foi uma risota pegada, e ele ali ao lado com uma grande lata a lamber a beiça e ar de vencedor, como que a dizer: - Quem manda aqui sou eu!

- Era um castiço.

Comprei-lhe uma bola. Todos os cães gostam de bolas, e comecei a lançá-la para o fundo do corredor na esperança que ele a fosse buscar. Qual quê? Não lhe ligou nenhuma, só passados alguns dias entendeu o esquema e aí foi dose, cheguei a arrepender-me, sempre que estava em casa era certo e sabido que ele vinha-ma pôr nos pés e ficava à espera que a atirasse. Era tal a loucura que tive que colocar um fecho na porta da casa de banho porque ele aprendeu a abri-la e eu tinha que estar sentado na sanita a chutar a bola para o fundo corredor, ele ia buscá-la numa corrida louca e voltava para ma colocar nos pés novamente. Nunca se cansava.

Depois que coloquei o fecho no interior foi um sossego, embora tivesse primeiro e durante algum tempo que ouvir os seus gemidos e o arranhar da porta com as patas, mas depois desistia.

Fartava-me de rir com as conversas que o meu filho tinha com ele, era demais. O rapaz fazia-lhe perguntas e respondia por ele, lembro-me de um dito que ele dizia com muita frequência: - Tu não te desgraces, olha que eu ferro-te – e o coitado ali a olhar para ele.

Era muito querido pela vizinhança, toda a gente aqui nas imediações o tratava pelo nome e o acarinhava. Tinha uma característica muito especial, ladrava que se fartava a qualquer indivíduo mal vestido ou com mau aspecto que passava aqui na rua, assim como não podia ver pretos, era uma algazarra danada até os perder de vista. Não fazia mal a ninguém, mas assustava sem dúvida, os que o conheciam já não ligavam, sabiam que era só barulho.

Aliás, acho que ele ladrava a essas pessoas com medo delas e tomava aquela atitude para se defender, porque de herói não tinha nada.

Cada vez que o levava ao veterinário, vinha de lá envergonhado com a figurinha triste que fazia. Tremia a bom tremer durante todo o tempo e só não fugia porque estava bem preso. Já era conhecido pelo espectáculo que dava. Nunca percebi a razão de tal temor, os outros cães todos sossegados e ele a tremer que dava dó. Os trabalhos que eu passava para o por em cima da mesa no consultório. Uf! Que canseira.

Um dia, tinha que ir buscar a família a Coimbra, à casa da aldeia, e resolvi ir na noite anterior de madrugada, imediatamente a seguir à saída do trabalho, como ia sozinho, passei por casa e meti-o no carro, o coitado tremeu durante toda a viagem. Bem lhe fiz festinhas e falei com ele para ver se acalmava, mas nada, ia apavorado. Parei numa área de serviço para tomar café e tentou fugir, estava até com receio que fosse para a auto estrada e acabasse atropelado. Lá o consegui agarrar, seguimos viagem, mas continuou a tremer o resto de percurso.

Depois de chegarmos, durante as horas que lá passei e na viagem de regresso já estava tudo bem. Só muito mais tarde percebi. Como praticamente só andava de carro quando o levava ao veterinário, ele pensava que ia à consulta, daí todo aquele medo e pavor.

Mas era muito dócil e mimalho, normalmente enroscava-se debaixo da secretária aos meus pés e enquanto eu estava no computador não saia de lá. Outras vezes enquanto eu teclava vinha pousar o focinho no meu braço e ficava à espera que lhe fizesse um miminho. Eu fazia de conta que não percebia e ele passado algum tempo carregava no braço com força como que a dizer: Então, não estás a ver que estou a pedir uma festinha?

Tanto era muito esperto e fazia coisas que nos causava admiração como andava completamente a leste e não ligava nenhuma a ninguém. O meu filho defendia-o sempre; -que era muito inteligente e sabia bem o que queria, quando eu dizia que ele era burro por andar pelos cantos completamente aéreo, mas devia ser da doença, já nessa altura o devia atormentar.

Dormia no meu quarto no tapete do lado da minha mulher, muitas vezes tentava subir para cima da cama, mas como era logo rechaçado por mim, deixou de o fazer, no entanto quando nos levantávamos esperava que saíssemos do quarto e mal sentia a porta fechada saltava para a dita cuja e enroscava-se todo satisfeito em cima da colcha. Quando me apercebi disso, saia, pouco depois voltava a entrar e ele não sabia onde se meter com medo que o castigasse.

Todas as noites de madrugada, deixava-o ir à rua um bocado e normalmente passado algum tempo começava a ladrar para lhe abrir a porta, mas às vezes armava-se em herói e andava dois e três dias na galderice, quando aparecia vinha com medo, cheio de fome e bastante sujo.

A princípio ficamos bastante preocupados, chegamos a andar pelas redondezas à sua procura mas depois já nem ligávamos.

Numa dessas aventuras foi atropelado na Avenida da Republica, a mais movimentada aqui da zona a cerca de trezentos metros, soubemo-lo devido ao rasto de sangue que tinha ficado no chão e veio a arrastar-se com uma perna partida até em frente de casa do outro lado da rua. Já não tinha forças para a atravessar. Nessa altura eu tinha ido buscar a minha filha a um emprego que tinha em part-time pois andava na faculdade, e o meu telemóvel tocou, como reparei que era de casa e estava a chegar não atendi, quando parei em frente a casa estava a porta aberta e a minha mulher com ele ao colo todo ensanguentado, quando me viu, imagino as dores que estava a sentir, mesmo assim fartou-se de abanar o rabo todo contente de me ver. Meti-o no carro e fui imediatamente à procura de uma clínica veterinária.

Sempre que curvava ou havia algum ressalto ele gania desesperadamente. Era domingo à noite e quase todos os sítios que conhecia estavam fechados, depois de várias tentativas lá nos informaram uma clínica onde o trataram. Tinha de ser operado mas só no dia seguinte, por isso recebeu os primeiros socorros, puseram-lhe uma tala na perna, medicaram-no e ao outro dia foi operado na clínica onde era seguido habitualmente.

Doeu muito vê-lo assim a sofrer, mas o pior foi que nos últimos tempos tinha ataques epilépticos quase que diariamente, chegou a ter aos dez por dia. Não dava para aguentar tamanho sofrimento do bicho e aconselhados pelo médico tivemos que o mandar abater.

Provavelmente ele era mais sossegado do que o irmão, quando nos foi dado a escolher porque já era doente nessa altura.

Enquanto me lembrar dele, se é que algum dia o vou esquecer, não quero mais nenhum animal.

Era um bom amigo.

Gaspar Silva
Enviado por Gaspar Silva em 12/05/2009
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