Um ir e vir realmente livre

Enquanto a escada rolante me levava, refletia sobre outra boa leitura que a Revista Piauí me ofertara. Uma matéria sobre a ministra Dilma Roussef, que discorre sobre tortura, entre outras questões, durante o regime militar. Causo-me incômodo imaginar as violências cometidas durante o regime fechado pelo qual o país passou. De certo, os choques elétricos aplicados nos presos por outros seres humanos ainda tocam a alma de muitos dos que foram torturados. Coloquemo-nos no lugar destas pessoas e tentemos sentir as emoções disparadas enquanto sofriam, e, depois de inúmeras violências contra si, devemos imaginar a dor que sentiam no silêncio da cela, quebrado apenas pelos possíveis gemidos da alma.

A vida é o bem mais precioso. A principal tutela do Estado. E viver com liberdade é preceito necessário que todos prezamos. De qualquer forma, o ser humano possui diversas prisões. São as amarras impostas pela mente. Esta que pode ser nossa boa amiga, ou nosso pior algoz. De uma maneira tal, que pode torturar o indivíduo sem lhe dar trégua. Uma prisão que ele nem percebe. É quando o ir e vir garantido por nossa Constituição se mostra limitado. Quantas pessoas vão a lugar algum, presas que estão em si, preenchidas de medos, incapazes de se comunicar?

Estou num refeitório. Meu “boa tarde” é um tanto resguardado. Hoje não estou tão livre. Acho que é um regime semi-aberto. A comida é simples. Os pastéis estão morenos demais, equívocos de uma fritura apressada. Aqui, e pelos corredores locais, já me sonegaram diversos cumprimentos, que se para muitos é simples ato, para outros chega a ser uma impossibilidade.

Um senhor carrancudo negou-me o olhar, portanto não foi possível cumprimenta-lo. Muitos outros me fizeram isto. Não me incomodo e até compreendo. Faz tempo abandonei a cartilha da condenação. É melhor que nos compreendamos uns aos outros.

Uma das moças que presta serviço de limpeza nesta estação do metrô me cumprimenta com os medos gritando em sua face. Sou recíproco e não demoro meus olhos para não incomodá-la. Passa um rapaz cabisbaixo. Sua feição demonstra melancolia. É a segunda vez que o vejo e já me acostumei com seu jeito.

Enquanto subtraio o trio de alimentos, faço uma construção literária que é apenas prévia do que se dá agora. Acho que estou surtado. Um surto literário. Qualquer detalhe é bem vindo. Alguns dos quais abro mão, sem explicar aqui o porquê.

Caminho apressado em direção ao meu local onde presto um serviço extra. Sinto o claro desejo em escrever, o que me foi muito esperado durante a semana. Ao mesmo tempo em que observo, sinto-me desprendido de tudo como se nada pudesse me abalar, mas isto de certo é uma inverdade.

Recordo-me daquele novo funcionário da limpeza na empresa em que trabalho. Sempre o cumprimento e ele responde tímida e educadamente. Mas jamais teve a iniciativa, e está claro que se não o cumprimentasse ele simplesmente se manteria em silêncio, sem sequer me dirigir o olhar numa intenção de ser cumprimentado. Não sei qual a sua preferência, e em verdade jamais pensei nisso. Este mesmo rapaz quase todos os dias vai à minha sala retirar a garrafa de café. Mesmo que a porta esteja aberta, bate antes de entrar, e só o faz mediante permissão. De modo cortês e até carinhoso o recebo. Acho que jamais iremos trocar palavras além das necessárias.

O que se vê por aí são inúmeras pessoas exercendo seu direito de ir e vir, presas em si. O artigo 5º da Constituição brasileira garante esta liberdade. Talvez devêssemos pensar nessas outras prisões aludidas aqui. A serenidade é um bem necessário. É condição fundamental para um ir e vir realmente livre.