O HOMEM DO CHAPÉU PRETO
Tarde de sol. Calor intenso, mas a multidão não arreda o pé. Todos se espremem querendo vê-lo pela última vez. Uns choram, outros permanecem em silêncio, retraídos, como se estivessem com vergonha de chorar.
De longe o observo em seu sono derradeiro, sereno. Enquanto olho-o inerte naquele caixão, meus pensamentos retrocedem como se fossem um vídeocassete que, em poucos segundos, rebobina um longa-metragem.
Volto ao passado, há aproximadamente vinte anos, quando conheci aquele homem com um velho chapéu preto, sem abas, enterrado até as orelhas. Na ocasião fiz-lhe uma proposta. Propus a ele que se jogasse fora aquele chapéu, eu compraria um outro novo. Desconfiado, imediatamente fez-me uma contraproposta: assim que ele ganhasse o chapéu novo, jogaria fora o velho... Concordei.
Tinha pouco mais de sessenta anos e aproximadamente 1,50m de altura, porém de um vigor físico invejável. Era um analfabeto filho da roça, mas tinha a sabedoria de um Mestre. Enganavam-se aqueles que tentavam “passar-lhe a perna”. Era bondoso, astucioso, moleque... Desde moço gostava de pregar peças nos outros, principalmente nas crianças que desobedeciam aos pais, tios, avós...
Contavam que ele costumava sujar o rosto com carvão ou pó de café e vestia-se com uma roupa velha. Jogava às costas um velho saco de estopa cheio de coisas quaisquer; entrava em casa pela porta dos fundos e, fingindo ser um doido, dizia estar à procura de crianças desobedientes para comê-las assadas. Dizia que dentro daquele saco que carregava às costas trazia as cabeças das que havia comido naquele dia.
Amedrontadas, as crianças corriam e se escondiam. Algumas embaixo da cama; outras, atrás das próprias mães. Às vezes embrenhavam-se mato adentro ou urinavam-se de medo. Tudo isso ele fazia com a conivência dos pais, e muitas dessas crianças eram seus próprios filhos, sobrinhos, afilhados e netos.
Além do lado moleque, tinha também o lado homem-responsável, trabalhador, bom filho, bom irmão, bom amigo, bom marido, bom pai...
Nele encontrei o pai que não tive, o amigo que sempre desejei, o sogro que muitos buscam encontrar... Nas suas palavras mal pronunciadas reencontrei a confiança nos homens, a essência poética do falar caipira, a sensibilidade e a simplicidade do homem da roça.
Quando retornei da viagem que fiz ao passado através dos meus pensamentos, percebi que uma lágrima solitária escorria-me rosto abaixo. Enxuguei-a com as costas da mão... Suspirei fundo e ao olhar à minha volta, notei que a multidão já não mais estava ali, pois acompanhava o caixão que havia sido retirado dos cavaletes pelos filhos e amigos sem que eu nada percebesse. Senti u’a mão levemente tocar meu ombro esquerdo. Era minha irmã chamando-me para acompanhar o cortejo. De braços dados com ela, segui a multidão.
Enquanto todos se aproximavam do local onde seria sepultado, para prestar-lhe a última homenagem, preferi ficar só, e à distância fiquei observando aqueles homens descerem lentamente o caixão com o corpo do pequeno grande-homem.
Inconsolavelmente chorei quando percebi que aquela seria a última vez que estaria vendo meu sogro, O HOMEM DO CHAPÉU PRETO; o homem por quem aprendi a ter respeito e admiração; o homem do sorriso sem dentes, porém tão puro e sincero quanto o de uma criança. Mas carrego no coração a certeza que hei de reencontrá-lo num mundo melhor que este em que vivemos, o mundo que ele sempre desejou que tivéssemos em vida: um mundo de esperança, de paz, de amor...