Valquíria
Se pudesse simplesmente sair por uma porta que desse para meu próprio paraíso e começasse a andar sobre a terra seca sob meus pés lutando incessantemente por um único sinal de vida então saberia que tudo fora uma grande ilusão, promessas perdidas... Só teria que recostar a uma árvore morta e olhar para o meu reflexo na terra imunda e vazia e depois adormecer ao infinito... De repente tudo está se perdendo, mas as pessoas ainda não se deram conta disso. O céu desmorona sobre nossas cabeças tornando nosso mundo cada vez menor, complexo e frívolo... Não sabemos mais se somos máquinas ou homens, ou se já fomos humanos algum dia.
Se encontramos um trago, isso nos faz sentir vivos, sentir que podemos fazer algo... Mas isto é um mero processo da obsessão ilusória de sermos uma raça. Quer saber, isto não é nada... Sentimos dores, isto nunca será diferente... Apodreceremos a cada respiração porque ela é também a morte que nos traga a todo instante. O sol desponta e então sabemos que é uma página a menos em nossa infeliz vida... Por assim dizer... Depois de tudo, resta um quadro nobremente emoldurado em uma parede mofada cercada de mobílias imundas e pessoas que você nunca conheceu... Mas isto é só uma possibilidade, de repente só apagam seu número. Não... Cortar os pulsos não vai mudar nada. Isto só acelera um processo inevitável, o caminho é doloroso, ainda o é... Não vai querer ver seu sangue gotejando incessantemente pelo chão frio e sem foco do toalete enquanto você é sua única platéia para o fracasso que reflete sua cara cheia de medo no espelho... Não é o mundo das maravilhas. Ah... Doce Valquíria, nunca disseram? Os hematomas da vida não desaparecem só porque resolveu dar um mergulho nas águas sagradas do esquecimento... Águas tão claras, claras de mais para serem do esquecimento...
Vê as pessoas lá em baixo? Pense no quanto são pequenas. Pense no quanto são medíocres... Os trabalhadores são como as formigas, marchando em batalhões em torno do gigante para amarrá-lo com fios de cabelos e depois alimentá-lo com o pão das crianças... Mas a pior parte é que a fome dele nunca se cessa... Pela expressão não deve ser a sua história favorita... Na verdade também não é a minha... Respire devagar... Se continuar assim pode acabar desmaiando e então não verá quando chegar o seu Ômega. O trem não vai muito longe sabe esse trem... O trem da vida. É uma viagem. Mas isto você sabia não é mesmo? Tem os lábios mais belos que já vi... Está chegando querida, logo irá descer... Não vai me dar um beijo de despedida? Eu achei que não...
Olhei profundamente nos olhos da donzela... Veio lhe uma lágrima de sangue ao canto... Afrouxei os braços e num último abraço a deixei cair. Nenhum grito. Só aqueles olhos, grandes e castanhos a olharem para mim... Apanhei o lenço que trazia no bolso, apalpei a fronte secando o suor do esforço, ajeitei o colarinho e os cabelos e me retirei sem muita pressa. Ouvi um grito que veio da rua, sim... Já a haviam encontrado, corpo debruçado sobre o asfalto que degustava prazerosamente o doce suave do sangue... O resgate removia o corpo enquanto eu atravessava a avenida e apanhava um taxi. Agora apagariam seu número. Valquíria e a Árvore me assistiam...