Linhas para minha mãe
Para Veralúcia Regis do Nascimento Silva
Quando se aposentou, minha mãe cobrou do meu pai a promessa de retornar à cidade de onde saíramos em busca de melhores oportunidades. Meu pai, com estilo diplomático peculiar, perguntou se ela realmente queria voltar para nossa cidade, separando-se dos filhos com quem mantinha forte vínculo emocional. Três mil e seiscentos quilômetros não poderiam ser transpostos como se estivéssemos em cidades ou em bairros vizinhos.
Por uma necessidade que desconheço, minha mãe se justifica, enumerando as conquistas que obtivemos: duas especializações em saúde coletiva e em saúde mental concluídas exitosamente por meu pai assim como as ações comunitárias e altruístas desenvolvidas por ele; meu mestrado e minha especialização em história, domínio de três ou quatro idiomas e minha coluna de crítica literária no “Jornal de Assis”; os trabalhos manuais de Regis ou as dezenas de ofertas de trabalho recebidas por Jovian, que minha mãe não cansa de espalhar que é uma sumidade na área de informática.
Talvez por minha mãe e eu possuirmos o mesmo gênio irascível, a mesma franqueza esmagadora e a mesma impaciência temperamental encontramos algumas dificuldades para derrubarmos as barreiras que se constroem em decorrência de nossos embates.
Se as palavras faladas não fluem, as escritas registram permanentemente um sentimento de admiração profunda pela coragem, pela determinação e pela fé que movem minha mãe. Coragem, determinação e fé que não integram minha personalidade, mas que não me impedem de dizer que, ao sairmos de nossa cidade natal, demos o primeiro passo para transformações significativas. Nossa felicidade independe da cidade onde morávamos, onde moramos ou em que moraremos.
Não importam as especializações ou os trabalhos comunitários do meu pai, mas sim a paciência e a compreensão com as quais a tratará depois de compartilhar as angústias, os sofrimentos e as indignações.
Qual a relevância de eu gostar de ler, de falar três ou quatro idiomas ou de escrever no jornal? O que realmente importa é que entrarei em casa gritando, berrando, batendo nas mesas, chutando cadeiras, portas e móveis, perguntando se tem algum doido ali e minha mãe respondendo que acaba de chegar um.
O que vale a pena é saber que todos os dias minha mãe vasculhará e desordenará os objetos de Regis que, apenas semanas depois, descobrirá e reclamará com ela. Mas tem que ser assim, pois minha mãe não dormirá feliz caso não brigue com meu irmão do meio.
O que vale é saber que Jovian ouvirá atentamente suas dúvidas de computação e, com a habitual calma que admiro, lhe explicará sem reclamar os mesmos procedimentos explanados dezenas de vezes.
O que vale, o que vale mesmo, o que vale de verdade, é saber que formamos uma orquestra cujo instrumento principal é minha mãe. Assim como em qualquer orquestra, todos os instrumentos não são nem melhores, nem piores, nem maiores, nem menores, nem mais nem menos importantes, mas todos são imprescindíveis e indispensáveis, mas minha mãe, além de imprescindível e indispensável, é essencial.
Por isso, quando conversar com seus amigos da “nossa terra”, esclareça-lhes que não existe a “nossa terra”, mas sim a “nossa família”: a “nossa orquestra”, de que, com peculiaridades, discrepâncias, divergências e amor, carinho e solidariedade, eu me orgulho de ser apenas um aprendiz em busca de afinação onírica.
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 7 de maio de 2009.