ERA FALSA A NOTA DE DEZ

Não, nem sempre a maré foi mansa para mim. Fugi de casa aos dezesseis anos, na base do sem lenço nem documento e de carona em carona fui bater com os costados na cidade de São Paulo. A última carona me despachou na Praça da Sé. Na mochila, só roupa suja, no bolso da calça jeans uma nota de 10, o que restou de uns trocados que me foi dado por um malandro solidário num restaurante de beira de estrada, acho que ele sentiu pena de mim, da minha cara de fome. Mas, como eu estava dizendo, fui jogada na Praça da Sé e estava lá, sentada num banco. O meu aspecto não era muito agradável, estava suja, corpo e vestimenta. O interessante é que não sentia medo, não pensava no que poderia me acontecer numa cidade grande, me sentia tão despreocupada, que parecia que eu tinha casa, papai e mamãe por perto; foi quando bateu fome, avistei um boteco, se é que podia chamar assim, onde um homezinho baixo de olhos puxados vendia caldo de cana e pastel. Pedi um copo de caldo e um pastel; foi-me dado. Comi o pastel, tomei e caldo , perguntei quanto era e puxei do bolso a nota de 10 pra pagar; o baixinho lá, pegou a nota, parece que achou esquisita, pois colocou na altura dos olhos e ficou observando por algum tempo, depois olhou pra mim meio desconfiado e embrenhou-se boteco adentro , para logo em seguida voltar com outro homezinho, conversavam numa língua esquisita, foi quando o que me vendeu o caldo e o pastel perguntou: hei mocinha você tem mais desta nota ai na mochila? – Respondi: não, só tenho essa – Ele insistiu: tem certeza? Onde você arranjou? Quem foi que te deu? – Respondi: foi um homem na beira da estrada. Ele continuou insistinfo: hei mocinha conta esta história direito, cadê o cara que te deu esta nota, é teu parceiro, ta lá na praça, mandou você passar esta nota falsa pra ver se colava, foi? Espera só que você vai contar esta história na policia. Ai ele segurou o meu braço enquanto o outro homezinho dava um telefonema, para logo em seguida chegar uma viatura da polícia e o soldado ordenar a minha prisão por me flagrar num crime de estelionato; foi o que o soldado disse. Tudo isto acontecendo e eu nem me perturbava, parecia que eu não fazia parte do ocorrido, tava nem ai e me puseram dentro do camburão e lá fui eu com a minha cara de paisagem. Até ai ninguém perguntou a minha idade, devia ser a minha cara suja e o meu cabelo desgrenhado que me fazia parecer mais velha. Delegacia à vista e me vi frente a frente ao doutor delegado. Este sim, perguntou a minha idade, quando eu disse 16, ele pediu meus documentos, que eu não tinha. Da delegacia fui direto para o Juizado de Menores e de lá para um orfanato. Assim, passaram-se dois anos, lavando banheiros, varrendo, estirando lençóis de cama, botando mesa e tomando conta das “infratoras” menorzinhas e levando cantada da inspetora. Fiz ontem 18 anos, me deram uma carta de “alforria” e outra de apresentação, irei trabalhar numa casa de família, na condição de arrumadeira, mas antes de me apresentar à patroa, passei pela Praça de Sé e me sentei no mesmo banco de dois anos atrás e avistei o mesmo chinesinho vendendo pastel e caldo de cana. A diferença agora, é que eu sabia por que ele tinha os olhinhos puxados, estava toda documentada, roupa limpa e penteada. E fiquei pensando..., puxa por conta de uma nota falsa de 10, passei dois anos sofrendo que nem couro de pisar fumo. Levantei e sai andando para o ponto de ônibus, meu rumo era o bairro da Liberdade; numa mão segurava a mala e na outra a carta de apresentação. E sabe Deus o que me aguardava...

PS: O tema “Nota falsa de 10 reais” me foi sugerido pela escritora Marília L. Paixão, como uma espécie de desafio à minha capacidade de ficção.

Zélia Maria Freire
Enviado por Zélia Maria Freire em 06/05/2009
Reeditado em 06/05/2009
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