QUEM PODE?

A noite foi gostosa. Fomos aqui pertinho, numa casa tombada pelo patrimônio e que é usada, à noite, como um restaurante, com música ao vivo. Durante o dia servem chás e lanches e atrás é um posto de gasolina. Tive a impressão de uma certa cumplicidade ente ele e o recepcionista... Como se ele fosse assíduo ali ou já tivesse ido na companhia de outras pessoas. Não gostei disso, senti um desconforto rápido, mas ao escolhermos nossa mesa já havia me esquecido.

• Quem pode negar o bom de encontrar alguém no fim do dia prá conversar, rir, comer alguma coisa, beber uma caipivodka - ou três, tomar um chopp - ou três? Ainda mais quando é véspera de feriado e a gente sabe que pode dormir até mais tarde, ficar de pijama até a hora que tiver fome. Talvez almoçar de pijama na preguiça e intimidade que os feriados nos permitem. Na verdade, até nos exigem, porque a semana é cheia de responsabilidades e seriedades.

Tomamos caipivodka e chopp. Ele quis fazer o pedido surpresa e eu disse que só não queria jiló. Me mandou fechar os olhos e colocou a primeira garfada na minha boca: salmão com alcaparras e umas bolinhas minúsculas de queijo derretendo... Delícia!! O mais delicioso é que fui sendo alimentada na boca, uma garfada pra ele, outra prá mim... A primeira foi a minha e isto foi uma delicadeza da qual eu gosto e observo... Pode existir coisa melhor do que cuidados e dengos??

Conversamos sobre a infância, estudos, cursos, família, percursos até chegarmos onde estamos. Não falamos sobre passados amorosos ou sobre os porquês de nada. Existe entre nós um mistério, quase um pacto, de não falarmos sobre planos e projetos, nem sobre os depois... Nos basta quando estamos juntos e queremos estar.

No dia seguinte não haverá contatos. Não sabemos onde cada um está nem para onde vai. Almoço sozinha, faço minhas coisas e sei que ele está por perto. A iminência de cruzar com ele seria uma alegria que eu não demonstraria efusivamente, mas fingiria não vê-lo se estiver na companhia de alguém... Quem sabe não existam mais pessoas que sintam o que eu sinto diante daqueles pratos? Parece que sente ciúmes de vez em quando. Não sei se é impressão minha ou mais um de seus jogos.

Eu penso em mim e nas emoções vividas. Penso nele, mas nunca perguntei se pensa em mim. Prefiro não ouvir suas respostas. Preciso que ele saiba quando penso nele. Não deixo que interfira na forma como convivo com ele e comigo mesma. Passo mensagens. Não sei que efeitos provocam. Também nunca perguntei. Prefiro não ouvir suas respostas.

Ele gosta do meu perfume e acho que do meu cheiro também. Perguntou qual era. Imaginei o meu perfume impregnado na camisa dele e no seu corpo. Pensei em não responder com receio de que outra pessoa passasse a usá-lo, mas o meu cheiro não vem em frascos nem pode ser comercializado. Disse: Carpe Diem (aproveite o dia). Será que meu perfume poderia ter outro nome?... Me pediu o absurdo de borrifá-lo em alguma coisa que ele pudesse cheirar quando sentisse saudade de mim. Disse que nunca! Com as sobrancelhas arqueadas e os olhos mais abertos, me perguntou por que não e eu respondi o óbvio : Melhor in loco!

Gostamos quando nossas mãos se seguram e isto nunca é imediato. Sempre acontece depois de algum tempo nos falando. Ele apóia a mão sobre minha perna, debaixo da mesa, e é o sinal que a distância imposta a princípio, talvez pra confundir a opinião pública, se quebra. Tem alguma coisa que ele não pode assumir, mas é feliz quando consegue. Adoro quando saímos de mãos dadas, principalmente, porque é quando acho que ele consegue sair do casulo e divido a alegria desses seus vôos. Gosto de mãos dadas até nas outras pessoas que vejo caminhando na rua, porque as imagino livres como borboletas, que podem voar de flor em flor, mas elegem uma pra seus vôos mais profundos.

• Em situações difíceis algumas pessoas compram muletas. Outras criam asas.

Não estamos apaixonados, isto é certo, mas sentimos atração, isto é indiscutível. Nunca sabemos quando estaremos juntos de novo, mas sabemos que ainda nos veremos. E que não haverá perguntas nem promessas.

Somos inteligentes sem o exibicionismo da cultura. Nossas conversas fluem naturalmente e não tento impressioná-lo com demonstrações de nada. Nem ele a mim. Temos uma coisa em comum: achamos inteligência afrodisíaca, não nos apaixonamos por pessoas burrinhas.

Sou mais transparente do que ele, bem mais. Não sei se um traço da personalidade ou se porque não tenho o que esconder ou temer. Esta é a única coisa que me preocupa entre nós. Não sei se sou uma daquelas escapadas prá fugir da rotina, embora já tenha perguntado se existe alguém que o espere sempre. Me disse que não, mas confesso que não consigo ler seus olhos ainda.

Tem pessoas que fazem questão de serem uma incógnita e se mantêm em mistério, com um limite bem definido de até onde podemos ir, saber ou perguntar. “Todos têm uma história, vieram de algum lugar e é dele que tiramos os nossos conceitos de certo e errado, bom e mal, justo e injusto”. Embora ele não saiba sobre elas, conheço as marcas que tenho.

• Quem poderia negar o bom de certas coisas, como dormir recostada no ombro de alguém, por exemplo? Não falo de cochilar, mas de dormir mesmo, ir embora, se entregar ao sono e ao cansaço - seja lá do que for - na confiança e proteção de um ombro. Acho que toda mulher gosta da proteção de um ombro, sabia? Acordar feliz por estar ainda perto de quem te afagou, de quem contou casos e te fez contar casos até da infância. De quem falou de si mesmo e te fez falar... nada tão profundo, ainda, porque o mistério é necessário e exige mais tempo prá ser rompido, além de uma caipivodka - ou três, de um chopp - ou três.

Ontem houve mais entrega do que das vezes anteriores. Dormimos juntos por umas horas e acordamos sem o susto de quem não assume as conseqüências ou quer evitar as evidências. Ele me ofereceu o ombro e eu recostei. Perguntou se estava bom. Não respondi, mas estava achando ótimo. Dormir no abraço era do que tinha saudades. Mas ele não precisa saber disto.

• Quem pode evitar o beijo na boca, primeiro de forma suave e roubada, meio de leve, sem muita língua, um pouco molhado, o suficiente prá calar a conversa, fixar o olhar, induzir o pensamento pra o que pode acontecer depois?... E o depois, que vem de forma inevitável quando o corpo responde e a alma suplica, quando não é mais possível racionalizar a vontade do que os dois querem... Do que não precisa ser dito?

Almoçava sempre naquele restaurante. Não apenas por ser o mais perto de casa, mas pelo prazer da comida e do lugar. Também porque os pratos brancos e grandes, leves sem serem frágeis demais, me lembravam os pratos chineses, os malabares e os shows que me encantavam tanto. Aqueles pratos me davam vontade de rodá-los no dedo, me levavam pra mágica dos circos. Eles não sabiam, ninguém sabia até então, mas todas as vezes eu olhava pra pilha de pratos e imaginava todos rodando. Pensei isto alto naquele dia. Ele estava à minha frente, logo depois de mim, ainda não o havia visto. Ele se virou e sorriu. Perguntei se sentia a mesma coisa. Me disse que sim. Me servi, me sentei, perdi-o de vista porque não procurei por ele. No outro dia, senti a mesma coisa pelos pratos e vontade de que ele aparecesse. Me servi, me sentei e ele apareceu sorrindo e esperando que eu estivesse ali. Assim nos conhecemos.

• Quem pode dizer o que é certo e o que é errado, quem pode impor uma regra - ou várias - prá o comportamento de um homem e uma mulher? Mesmo que um deles queira o feriado e o final de semana e que o outro só queira uma noite - ou três!

Glaucia Tassis

GLAUCIA TASSIS
Enviado por GLAUCIA TASSIS em 05/05/2009
Código do texto: T1577850
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