Ó MEU DOCE, ALGODÃO DOCE


“Grande, quem tem humildade de pedir.
Maior ainda, quem tem a espontaneidade para doar”

À Maria Idelfonsa Vieira Veiga

Por essa época, Carlos seguramente contaria com seus10 anos. Não mais que isso. Dela, poder-se-ia afirmar também com segurança, quase uns 70 anos. Baixinha, rechonchudinha, canelas finas --- próprias dos andarilhos infatigáveis --- caminhava devagar ao peso dos anos, à semelhança de uma patinha branca, tombando o corpo pra lá e pra cá. Cabelos totalmente encanecidos; fisionomia séria e distante --- lembrava os devotados místicos --- embora gargalhasse prazerosamente quando o momento exigisse, o que raramente acontecia. Trajos simples de algodão e de seda consistiam, quase sempre, em duas ou três anáguas amarradas à cintura e um vestido cobrindo tudo. Todos impecavelmente brancos e limpos. Uma cesta de arame numa mão e um terço surrado no bolso; estava pronta para percorrer as ruas do bairro e de Goiânia em busca de seus adjutórios.
Por conta de suas andanças e de seus cabelos inteiramente brancos, granjeara a estima da população que a reconhecia com um comentário carinhoso:
--- Olha, lá vai a velhinha que gosta de cinema!
Mineira de N.Sra. da Abadia D’água Suja, veio para Goiás em 1926.
Analfabeta, sentiu-se privada das maravilhas das letras desenvolvendo, em contrapartida, um poderoso fascínio pelas telas dos cinemas; beata, transferiu toda sua adoração terrena pela igreja, gozando cotidianamente do profano e do sagrado. Raro o dia em que privava a alma da comunhão eucarística e o corpo do deleite de um filme qualquer.
Tal como de hábito, todos os dias não tinha hora para chegar. Nesse, em particular, chegou por volta das 8 horas da noite; sentou-se cansada sobre uma banqueta na cozinha, afastando com as mãos as chinelas carcomidas. Escorou em seguida, nos grossos pés, cingidos por escamas endurecidas, a sacola de arame onde colocara os alimentos que ganhara. Com a sua curiosidade de criança, Carlos começou a remexer o conteúdo da sacola: um saquinho de papel engordurado com um punhado de arroz dentro, um naco de toucinho solto, uns bifes enrolados num papel também de saquinho, bananas amassadas a exemplo de dois pães.
--- Anita! Chamou. Olha aqui... vem tirar uma coisa pro menino comer!
Paciente, a mãe do menino acudiu ao chamado, permitindo-o fazer a primeira refeição do dia.
Carlos guardou de sua querida tia um belíssimo verso que ela cantava enternecida e saudosa. Algumas vezes, ao cantá-lo, chegava às lagrimas.



“Joguei o limão prá cima
ele enverdeceu,
Aonde o limão caiu
a terra tremeu,
Dei um suspiro dobrado
que me doeu,
Alembrei de um coração
que já foi meu.”
Passada a cantoria, recolhia-se à surrada banqueta cruzando as mãos no colo e passava horas e horas cismando. Os olhos, agora, perdiam-se ao longe, revisitando locais ou passagens distantes que a inocência do menino não ousava imaginar.
Terminada a cisma, corria a revirar uma caixa de madeira à qual dedicava devotado ciúme, embora nem fechadura tal caixa tivesse. Remexia o seu conteúdo de saias, combinações, véus de comunhão, fitas com efígies de santos e um centenário crucifixo de madeira, lembrança de Minas. Nunca tinha mais que isso. Arrumava e desarrumava aquilo por várias vezes, numa terapia consoladora.
Nada tinha, nada almejava a não ser a sua invejável saúde graças, segundo ela, a freqüentes doses de aguardente alemã, a real vitalizadora de sua íntegra disposição.
Recuperada de um terceiro acidente, ainda percorreu as ruas da cidade por vários anos; acamou-se por volta de 1977, vindo a falecer em 1983, aos 96 anos de idade.
Como diriam os gregos e os romanos: “passe bem,--- minha tia --- que a terra te seja leve”.