MARLENE, EMILINHA E REPORTER ESSO
                                                                        ou
                                           INDÍCIOS DA VELHICE COMO ELA COMEÇA
 
 
     Acordei com um barulho desesperador, parecido com britadeira doméstica, alguma obra que vem agredindo as manhãs nos apartamentos superiores.
     Levantei num salto pisando em livros e cadernos esparsos pelo chão, atordoada e em busca do relógio para situar-me. Onze e meia, atrasada com o remédio da manhã, mas paciência, tomo agora. E também um cafezinho pra despertar. Que esta agressão de som deve ser o hábito dos favelados e dos-classe-média usando o seu fundo de garantia e reformando suas casas e suas vidas nas mãos do sorridente e irrefletido Lula.
     Cafezinho acalma e ordena o pensamento e faz pensar em nada, sem compromisso com nada, e comecei a assoviar uma música que se ouvia no rádio ou sei-lá-onde e era repertório de programas de radio de auditório de Cesar de Alencar que ficava lotado com as domésticas e outros, igualzinho ao Faustão, aliás, melhor, pois “nada é pior que o Faustão falante”, nunca fui lá conferir, meu universo era outro. Era época sem TV, ouvia-se radio e LP. E liam-se gibis, livros e jornais. Nelson Rodrigues a cada dia na “ULTIMA HORA”.
     Uma música cantava Marlene, “a rainha do rádio”, que tinha uma rival Emilinha Borba em popularidade, e hora uma era rainha, ora era a outra, nos noticiários:
“Eu ando aflita, ando atrás de um casamento,
Não pretendo ir pro convento e nem ficar para titia...
... Assovio é ótimo, a gente faz todas as notas e inventa também...
...e um moderno apartamento à beira mar!
Se alguém agradou da descrição e se quiser a minha mão,
 Peço a Deus que se apresente.
Eu só desejo que meu futuro esposo, seja muito carinhoso,
e me dê um apartamento pra morar!
Tudo isso regadinho com champanhe!
Quero também uma casa em Teresópolis, uma
 outra em Petrópolis e um moderno,,,,, palacete pra morar!
 
     Vou esquecendo ou não lembrando, mas é assim que a gente “começa” a ficar velho, para gáudio e informação a uma grande escritora do Recanto, cuja mãe em criança lhe contava histórias de mortos assustarem de noite com olhinhos vermelhos e para não se assustar quando a velhice chegar, mas ter a cabeça sempre um bom uso, pois que a gente vai esquecer tudo depois.
     Mas o primeiro sintoma da velhice mesmo é a diminuição da memória.
     Lembro que comecei a ir a médicos pra cuidar da saúde, mas sempre esquecia algum sintoma para relatar. Comecei a tomar nota nas menores coisas sentidas para ser medicado ou acudido a tempo daquilo não piorar. Fazia uma lista enorme. E a memória foi piorando, inexoravelmente. Talvez por isto seja que os velhinhos ficam quietos num canto sem nada falarem; esqueceram tudo. Numa destas idas à minha querida médica Loretta Burlamaqui, falei tudo e muito mais, pois ela é maravilhosa e ainda amiga e, aí, o papo rola solto com grande alegria e confiança. Sai toda feliz pra Praça Nossa Senhora da Paz, comemorando a vida. E sempre que ia a Ipanema ia ver as vitrines que são as melhores da cidade, pelo menos eram.
     Andando pelas calçadas, de repente, lembro:
“NÃO FALEI DO PRINCIPAL: A MEMÓRIA!”
E em seguida cai na gargalhada e aceitei a realidade, como é que eu ia me lembrar de dizer que estou com memória fraca, se é o que me falta! É assim que começa a se perceber e aceitar o sinal dos tempos.
 
     Já na minha infância dos dez anos, em Leopoldina, vem uma doce lembrança do adormecer feliz: o rádio transmitia a voz do locutor precedida de uma música tcham, tcham, tcham... TCHAM... TAM – TAM – TAM-tam: “aqui fala O REPORTER ESSO”, não sei se sou injusta em mal lembrar se era Herom Domingues ou outro locutor, mas aquela voz era deus, doçura, sonho, dádiva. Eu não prestava atenção no noticiário, eu ouvia aquela voz maravilhosa e ia adormecendo embalada por uma felicidade de carinho, mel e paz na segurança que tudo estava bem na superfície da terra.