A ILHA DOS CAVALEIROS NÁUFRAGOS
No início, era apenas um. Vinha ao longe, o reflexo do sol poente no Lago Guaíba era forte, e passava por entre as patas finas do cavalo igualmente fino. Somente quando aproximou-se um pouco mais, podia-se ver o meninote. Era ainda mais fino. Conduzia o pingo por uma corda que ficava invisível, pela distância misturada ao forte reflexo por de trás. A ruazinha era de chão batido, como não poderia deixar de ser em uma pequena favelinha como aquela.
E enquanto ajustava o cinto de minha farda, pois queria estar impecável, notei que novos pontos, semelhantes ao primeiro, surgiam ao fundo. Eram mais cavalos. Primeiro três, depois quatro, e então cinco. Parei de contar, eram muitos. A cena tinha algo de mágico, a luz refletida do sol poente dava um tom inexplicável ao que se via. Porém, um comando me alertava que precisava entrar em formação. A “retreta” começaria.
Nos poucos instantes que me senti um contemplador dos detalhes, quase esqueço-me que estava ali, e como Policial Militar.Mais que isso, como Músico da Banda da Policia Militar. E que tocaríamos para as crianças da Ilha dos Marinheiros, na inauguração de uma pequena biblioteca escolar.
Que evento grandioso! Poderia ser maior? Poderia ser mais importante do que o evento que horas antes colocava-nos imóveis, a tocar a “Marcha dos Cônsules” ao ilustre diplomata de um país do qual já nem mais lembrava...
Era ele um único homem. Certamente já sabia ler e escrever o próprio nome. Diferentemente daquelas crianças todas à nossa volta, que vertiam olhares encantados aos instrumentos grandes e dourados.
Algumas gritavam, corriam em volta da formação da Banda. Outras pareciam tímidas, escondiam seus corpos magros e amorenados de sol, algumas encardidas, atrás de suas mães, irmãos mais velhos, mas com aquele olhar curioso que somente habita a face de crianças que não tem um computador em casa. E que não tem nada além da certeza de um destino previsível e estatisticamente triste. Por instantes, percebi o quão importante era estar ali. E ser policial. Quisera ser visto como um, dentre os colegas, pois torcia para que sempre que aquelas crianças vissem a polícia, não a temessem. Que fosse para comemorar vitórias. Que não fosse para celebrar fracassos, que na verdade não seria apenas deles, mas também meu.
Queria empunhar meu Sax, e tocar bem o bastante, para que jamais esquecessem o quanto é belo ouvir música. E o quanto é belo ter uma pequena biblioteca, para se poder ler, e se poder saber que havia um mundo depois daquela ponte. Da ponte que separava o mundo portoalegrense do mundo náufrago da Ilha dos Marinheiros. Era uma comunidade pequena demais para ser importante. Mas grande demais para ter solução.
Toquei. Não me lembro que músicas foram, mas não esqueço dos sorrisos que me alegraram. Nem das indiferenças que me deprimiram. Mas num breve intervalo, elucidei o mistério dos cavalos que brotavam do horizonte.
À beira da estrada, um pequeno lago, mais parecendo uma grande poça de água. Algum pasto ralo, formando-se entorno da água. Um oásis para cavalos magros como aquelas duas ou três dezenas de matungos ossudos, quase todos conduzidos por crianças pequenas. Algumas passaram por nós com o mais absoluto desprezo. Mas eu sabia que não era indiferença. Era apenas defesa. Não pertenciam àquela escolinha, ou então estavam em “horário de trabalho”.
Havia um sistema, era visível. A “Economia” daquele lugar girava em torno destes cavalos, pois eram quase todos veículos, para carregar papelão e o lixo produzido por aquela enorme selva de edifícios altos que se podia ver ao fundo do cenário, agora não tão belo. Estava cheio de cavalos magros, crianças magras, com água pelo meio das canelas finas.
Fazia frio. Questionei-me se eu conseguiria suportar aquilo.
Um ou outro moleque abanou. Correspondi, sorrindo, mas ao olhar para o lado, vi que era encarado como um idiota por colegas cansados, certamente contrariados com o fato de estarem ali. De certo modo, eu também me sentiria, se não tivesse conseguido enxergar a beleza trágica do desenvolvimento humano. Inclusive de nossa presença ali. Era um sistema, e éramos pequena parte da cerimônia de rolamento das engrenagens hipócritas da maquina social. Éramos o afago que precede o tapa. O tapa da realidade do futuro.
Pela manhã, pais maltrapilhos e desdentados sairiam em carroças puxadas por aqueles matungos, em busca de papelão e lixo urbano, para trazer o máximo que pudessem para os pátios dos casebres daquela favela. As crianças ficariam por lá, se não tivessem já o tamanho necessário para conseguirem ajudar na lida. Fazendo o que? Catariam pasto para cavalos, e passariam o resto do tempo sobrevivendo de algum modo pouco pedagógico. Com sorte, jogariam bola na escola. Sem sorte, sabe lá Deus. E sabia.
Nossa missão acabou. Menos de uma hora depois de termos chegado. A deles acabara de começar, alimentando os cavalos. Ouvi de um colega: “Pobre cavalo. Olha que secura! É virado em ossos, o coitado”.
Olhei para o cavalo, e para o menino ao lado dele, desprezando nosso ônibus que passava a metros dele. Mesmo curioso, ele não nos voltou o olhar. “Pobre cavalo”, concordei. “Pobre cavalo”. Olhei mais uma vez para o rio, o famoso “Lago Guaíba”, que anoitecia imitando o céu. Nele, estrelas e luzes urbanas pareciam mergulhar sem se apagarem. Ele às engolia. E agora, lá atrás, no fim da ponte, parecia engolir a Ilha. E seus cavaleiros. Foi então que completei: “Pobres Cavaleiros”. Eram apenas cavaleiros. Cavaleiros de um novo tempo.
Eram náufragos.
(.:Ricardo Vieira:.)
No início, era apenas um. Vinha ao longe, o reflexo do sol poente no Lago Guaíba era forte, e passava por entre as patas finas do cavalo igualmente fino. Somente quando aproximou-se um pouco mais, podia-se ver o meninote. Era ainda mais fino. Conduzia o pingo por uma corda que ficava invisível, pela distância misturada ao forte reflexo por de trás. A ruazinha era de chão batido, como não poderia deixar de ser em uma pequena favelinha como aquela.
E enquanto ajustava o cinto de minha farda, pois queria estar impecável, notei que novos pontos, semelhantes ao primeiro, surgiam ao fundo. Eram mais cavalos. Primeiro três, depois quatro, e então cinco. Parei de contar, eram muitos. A cena tinha algo de mágico, a luz refletida do sol poente dava um tom inexplicável ao que se via. Porém, um comando me alertava que precisava entrar em formação. A “retreta” começaria.
Nos poucos instantes que me senti um contemplador dos detalhes, quase esqueço-me que estava ali, e como Policial Militar.Mais que isso, como Músico da Banda da Policia Militar. E que tocaríamos para as crianças da Ilha dos Marinheiros, na inauguração de uma pequena biblioteca escolar.
Que evento grandioso! Poderia ser maior? Poderia ser mais importante do que o evento que horas antes colocava-nos imóveis, a tocar a “Marcha dos Cônsules” ao ilustre diplomata de um país do qual já nem mais lembrava...
Era ele um único homem. Certamente já sabia ler e escrever o próprio nome. Diferentemente daquelas crianças todas à nossa volta, que vertiam olhares encantados aos instrumentos grandes e dourados.
Algumas gritavam, corriam em volta da formação da Banda. Outras pareciam tímidas, escondiam seus corpos magros e amorenados de sol, algumas encardidas, atrás de suas mães, irmãos mais velhos, mas com aquele olhar curioso que somente habita a face de crianças que não tem um computador em casa. E que não tem nada além da certeza de um destino previsível e estatisticamente triste. Por instantes, percebi o quão importante era estar ali. E ser policial. Quisera ser visto como um, dentre os colegas, pois torcia para que sempre que aquelas crianças vissem a polícia, não a temessem. Que fosse para comemorar vitórias. Que não fosse para celebrar fracassos, que na verdade não seria apenas deles, mas também meu.
Queria empunhar meu Sax, e tocar bem o bastante, para que jamais esquecessem o quanto é belo ouvir música. E o quanto é belo ter uma pequena biblioteca, para se poder ler, e se poder saber que havia um mundo depois daquela ponte. Da ponte que separava o mundo portoalegrense do mundo náufrago da Ilha dos Marinheiros. Era uma comunidade pequena demais para ser importante. Mas grande demais para ter solução.
Toquei. Não me lembro que músicas foram, mas não esqueço dos sorrisos que me alegraram. Nem das indiferenças que me deprimiram. Mas num breve intervalo, elucidei o mistério dos cavalos que brotavam do horizonte.
À beira da estrada, um pequeno lago, mais parecendo uma grande poça de água. Algum pasto ralo, formando-se entorno da água. Um oásis para cavalos magros como aquelas duas ou três dezenas de matungos ossudos, quase todos conduzidos por crianças pequenas. Algumas passaram por nós com o mais absoluto desprezo. Mas eu sabia que não era indiferença. Era apenas defesa. Não pertenciam àquela escolinha, ou então estavam em “horário de trabalho”.
Havia um sistema, era visível. A “Economia” daquele lugar girava em torno destes cavalos, pois eram quase todos veículos, para carregar papelão e o lixo produzido por aquela enorme selva de edifícios altos que se podia ver ao fundo do cenário, agora não tão belo. Estava cheio de cavalos magros, crianças magras, com água pelo meio das canelas finas.
Fazia frio. Questionei-me se eu conseguiria suportar aquilo.
Um ou outro moleque abanou. Correspondi, sorrindo, mas ao olhar para o lado, vi que era encarado como um idiota por colegas cansados, certamente contrariados com o fato de estarem ali. De certo modo, eu também me sentiria, se não tivesse conseguido enxergar a beleza trágica do desenvolvimento humano. Inclusive de nossa presença ali. Era um sistema, e éramos pequena parte da cerimônia de rolamento das engrenagens hipócritas da maquina social. Éramos o afago que precede o tapa. O tapa da realidade do futuro.
Pela manhã, pais maltrapilhos e desdentados sairiam em carroças puxadas por aqueles matungos, em busca de papelão e lixo urbano, para trazer o máximo que pudessem para os pátios dos casebres daquela favela. As crianças ficariam por lá, se não tivessem já o tamanho necessário para conseguirem ajudar na lida. Fazendo o que? Catariam pasto para cavalos, e passariam o resto do tempo sobrevivendo de algum modo pouco pedagógico. Com sorte, jogariam bola na escola. Sem sorte, sabe lá Deus. E sabia.
Nossa missão acabou. Menos de uma hora depois de termos chegado. A deles acabara de começar, alimentando os cavalos. Ouvi de um colega: “Pobre cavalo. Olha que secura! É virado em ossos, o coitado”.
Olhei para o cavalo, e para o menino ao lado dele, desprezando nosso ônibus que passava a metros dele. Mesmo curioso, ele não nos voltou o olhar. “Pobre cavalo”, concordei. “Pobre cavalo”. Olhei mais uma vez para o rio, o famoso “Lago Guaíba”, que anoitecia imitando o céu. Nele, estrelas e luzes urbanas pareciam mergulhar sem se apagarem. Ele às engolia. E agora, lá atrás, no fim da ponte, parecia engolir a Ilha. E seus cavaleiros. Foi então que completei: “Pobres Cavaleiros”. Eram apenas cavaleiros. Cavaleiros de um novo tempo.
Eram náufragos.
(.:Ricardo Vieira:.)