Sobre a música esquecida
Eu poderia escrever sobre as bandas e os cantores de que gosto. Poderia dizer, por exemplo, que me identifico muito com as letras da Legião Urbana, que The Cranberries tem músicas perfeitas para se ouvir após um encontro perfeito, que “Always where I need to be” do The Kooks me dá vontade de sair dançando pela casa, que Chico Buarque me faz, ao contrário, ter vontade de ficar encolhida no sofá, apenas escutando. Mas eu não poderia, por exemplo, dizer quantos CDs cada um deles já produziu, quais as músicas que resumem a essência da banda ou cantor, quais os nomes completos de cada integrante. Eu não sou desse tipo de pessoa. Admiro muito quem tem na música a sua maior curiosidade e o seu maior prazer, quem pesquisa, discute, coleciona, vai a shows, toca numa banda, aprende piano, violão, flauta transversa, violino e agogô aos 5 anos de idade. Já eu, troco letras de músicas com freqüência, erro o ritmo, esqueço nomes, rostos, estilos e sempre achei que cordas, teclados e baquetas não combinam bem com a minha (des)coordenação motora. O que não elimina a minha vontade de aprender, que fique claro.
Prefiro deixar essa tarefa de recomendações de discografias a quem realmente sabe ou tem confiança suficiente para opinar sobre. Mas o que sobra pra mim então? Não posso escrever sobre a parte técnica da música, com todas as suas peculiaridades complexas e maravilhosas. Poderia escrever sobre as sensações que músicas diversas me provocam, mas isso acabaria por tirar um pouco da mágica daqueles momentos só meus. E era nisso em que estava pensando enquanto voltava a pé para casa, atravessando a Redenção, debaixo de um sol de 27 graus. Sobre o que escrever?
E no fugaz intervalo entre um pensamento e outro, quando seus cinco sentidos finalmente captam as pessoas, o ambiente, os cheiros e sons à sua volta, e a sua mente parece aterrizar de algum lugar do espaço sideral, eu tive a súbita epifania, a la personagens de Clarice Lispector. Eu já sei sobre o que vou escrever!
E essa certeza foi como uma bofetada nos meus cinco, até então anestesiados, sentidos. Desse momento em diante eu comecei a prestar atenção nos sons ao meu redor. E eram tantos! O suave farfalhar das folhas das árvores, galhos e folhas sendo remexidos por algum passarinho em busca de alimento, o cascalho sendo pisoteado por dois amigos conversando, as rodas da bicicleta em movimento, um homem que cantarolava desafinado na minha frente, a água jorrando do chafariz, as turbinas de um avião que cortava o céu naquele exato segundo, serras elétricas e pancadas de metal de alguma obra distante, as pombas do meu lado com seu arrulhar preguiçoso, conversas, risos. Em contraste com esse reaggae desconexo, próximo dali, na Av. João Pessoa, um tambor de caos batia incessante: carros, ônibus, buzinas, burburinho de gente apressada. A música de outra realidade que nunca pára o seu ritmo acelerado. Muitas vezes, por causa dessa música enlouquecedora, costumamos desconectar nossa mente do presente e deixar nossos pensamentos divagarem em outras batidas, as sintéticas. Admito que esse desligamento é fundamental se quisermos manter alguma sanidade mental, e as músicas que citei lá em cima me ajudam com grande louvor nessa tarefa.
Porém, nesse jogo de surdez voluntária, ignoramos quase por completo as músicas que estão presentes nos acontecimentos do dia- a-dia. E elas podem não ser tão harmoniosas e agradáveis quanto o som de um violão, uma guitarra, um teclado ou um vocal afinado, mas são incríveis na sua espontaneidade. E a combinação das batidas do meu coração com o som das teclas enquanto digito me faz perceber que, seja o som da chuva caindo no telhado ou seja o bom e velho rock’n roll, a melhor música ainda é aquela que te faz querer estar vivo para poder escutá-la.