De outra forma
De outra forma
Pensei nela ontem. Foi o entardecer. Trouxe um instantâneo de momentos felizes. Não, não teria dado certo, embora seja impossível afirmar cem por cento. Tampouco deixou saudade, mas sei que isso é uma fraude. Dessas que a gente conta nas tardes de frio, quando, num átimo de segundo, a memória conspira em retratos com moldura bem acabada. A lucidez das emoções de agora, no entanto, traduz que ela veio na hora certa. Demos um para o outro aquilo que mais necessitávamos. Amor. Depois, passou.
Me diga, o que é que foi feito para durar?
Jamais teríamos sido companheiros. Companheirismo implica em dividir o fardo. Mas, atente bem, não chegamos ao ponto de dizer: amo você, como um tabagista ama seu cachimbo.
Na minha idade, o que se almeja, sem descartar a possibilidade de estar equivocado, não significa exatamente uma companheira, mas uma complementação afetiva. Na minha idade, a mentira tem até sobrenome. Além do mais, as mulheres estão cada vez mais jovens.
Olhe ao seu redor, depois me diga se estou mentindo.
Soube de um sujeito que sacrificou o som da própria voz em nome de uma crença chamada lar. Até o dia em que ele ouviu: “você é muito bom para tomar conta dos cachorros”. Pelo suficiente que eu o conheço, soube que ainda assim permaneceu, suponho que em nome da crença. Depois, partiu. Pouco depois de terem dito pra ele: você não está à altura. Ou, você nos embaraça. Não me lembro direito. Faz tempo. Difícil atinar por onde ele anda. Corações partidos surpreendem. Sei apenas que tinha essa crença: lar.
O quanto não se sofre por um conjunto de idéias.
O sol de outono, pouco antes de se recolher, emana raios bem específicos. É quando se precipita certa qualidade mental.
Lembro que ela gostava de ficar escondida atrás da porta, para me dar um susto. Nunca tivemos um lar. Fazíamos piqueniques nessa gigantesca cidade, gostávamos de caminhar, quase fomos à Minas e, na praia, quando chovia, líamos e comíamos, entre as coisas que um homem e uma mulher fazem, sobretudo quando se gostam.
Sem exageros, a necessidade de amor extrapola nossa compreensão. Mas, eis a questão: o que é amor?
Clara era uma amiga muito querida. Tinha olhos marotos e senso de humor. Depois de 15 anos casada com um marido exemplar, achou sobre a cama uma longa carta escrita em letra de forma, cujo resumo assim se mostra: fui. No dia seguinte se dirigiu ao banco, e a poupança conjunta para uma vida melhor também fora.
Vou te dizer uma coisa: Clara é uma guerreira. Desconheço seu paradeiro, mas com o entardecer de ontem, mais essa alma visitou minhas lembranças.
No parque, um jovem casal fazia planos.
Estamos aqui para isso, para planejar e ressurgir face a derrocada dos planos. E quando se pensa que a conta já foi pedida, sempre aparece uma surpresa alertando: onde você pensa que veio parar? Guardou algum fôlego? Pois vai precisar dele.
Sim, é verdade, já vi muitas histórias. Os encontros são alegres, confesso, confesso também que as crenças são vorazes, e que o equipamento claudica, sendo em dado instante imperativo acreditar nalguma coisa.
Crenças. Por um prato de afeto aceita-se até... tsk, aceita-se até o que, depois de um tempo, fica considerado como inaceitável.
Peritos no assunto dizem que isto está relacionado com auto-estima. Peritos noutros assuntos avisam sobre o poder do auto-engano. Peritos sei lá de que apregoam a auto-suficiência.
Mas eu lhe pergunto: o computador que você está usando tem um fio que vai até a tomada? Eletricidade. Pagamos a conta em dia, mesmo sem saber o que é. Mesmo sem saber o que é, necessitamos. Onde pretendo chegar? Que a auto-suficiência é relativa. A abelha não faz o mel sem as flores, e as flores não polinizam sem a ajuda de terceiros.
Precisamos uns dos outros.
Não fosse uma grande amiga, e meu nome jamais teria saído na primeira página de um jornal. Não fossem minhas repetidas ameaças de que um dia bateria em sua porta, pedindo um prato de comida, e ela não rezaria fervorosamente todas as noites, clamando aos céus para que isso não aconteça. Graças a ela, meu santo nome foi espalhado noutras paragens, e, graças a mim, a fé dela foi triplicada.
Mas claro que, na minha idade, já ouvi muitas histórias, embora tenha entendido errado boa parte delas. Que importa?
Sei que, com relação as minhas histórias, se me perguntar se eu teria feito diferente, lhe responderia: não sei. Mas teria tentado ser honesto comigo mesmo, ainda que de outra forma.