Pitorescos desta Terra
Pitorescos desta Terra
• Meu amigo Dr. Sylvio, dizia que tinha um amigo chamado Vavá Cosquinha.
• Meu amigo Luis diz que tinha um amigo chamado Toninho Dendeca.
• Minha avó contava que, quando menina, nos almoços de família, aparecia um tio que colocava os dentes sobre a mesa e dizia – vou dar de comer aos dentes.
• Durante anos joguei bola com o Petiba.
• Adolpho Bloch, contam, quando faltava grana para pagar os funcionários, ia até a padaria em frente e literalmente esvaziava o caixa do seu Joaquim, e ficava quites com seus funcionários. Depois abençoava seu Joaquim, ficando quites logo depois.
• Antonio Pereira Inácio, numa tarde de garoa no principio da década de 20, chegou aos banqueiros associados e disse-lhes: me emprestem tanto, senão eu quebro, e se quebrar não posso saldar o outro tanto, que já lhes devo. Emprestaram. Com a grana, Antonio, na hora de saldar o saldo, disse-lhes – comprei o Brooklin! (bairro paulistano), e ganhei uma grana preta no jogo imobiliário.
• Padre R., (pois ainda está vivo), tinha surtos noturnos em sua pequena cidade, por conta do Santo Etílico, e saía pela madrugada acordando todo mundo com gritos, um sino e uma vaca mugindo à tira colo.
• Vavá Cosquinha era pai de família, trabalhador, estimado por toda a comunidade na Santos de 1936, convivia bem com o apelido sem perder o brio.
• Toninho Dendeca desencarnou nos idos dos 70, na vila Guilherme, em Sampa, com quase 50 anos de exercício da medicina.
• Petiba tinha a capacidade de jogar sem chuteiras no futebol de várzea de Dois Córregos, em 72, não por pobreza, talvez por estranheza, para os outros, e para ele mesmo, que detestava sapatos, e tinha uma destreza muitíssimo similar à do Edson.
• Luis Fernando Veríssimo desenvolveu um personagem, médico, provedor, com clientela estabelecida, que, em dado momento, arranjou um daqueles óculos com bigode e nariz falsos, e passou a atender os pacientes assim trajado. Família, amigos e clientes o abandonaram. Não sem antes dizer que ele não poderia usar tal traje, e ele sem ceder, dizendo que o mesmo não lhe roubava nem a dignidade, nem a capacidade. Sempre achei que esse conto ou crônica do Veríssimo dava pasto para uma enciclopédia de reflexões. Não sei em que época isso foi publicado, mas o termômetro supra sensível do autor já acusava as mudanças que viriam, e hoje não são novidades, pois engessaram-nos. O pitoresco, que também pode ser encarado como ousadia e destemor, quando e se surge, é enquadrado com adjetivos pejorativos, e arquivado com estreitas finalizações: isolamento é uma delas.
• O escritor Almeida Nogueira nos conta que na São Paulo de 1868, durante a apresentação de uma peça teatral, um dos estudantes na platéia dá asas ao seu entusiasmo e aplaude além do permissível, na visão do Governador da Província. Apenas pelo fato de umas palmas a mais, ele indica o xilindró para o jovem. Outros 4 estudantes protestam, e se mostram dispostos, em solidariedade, a ir para a cadeia junto com o amigo. Passam um mês lá. O chefe de polícia reclama: os jovens fazem uma algazarra danada, tocam instrumentos que os familiares lhes enviaram, lêem e declamam poesias. Cento e cinqüenta anos depois isso parece ficção bizarra: ir para a cadeia em gesto de solidariedade face a uma ação injustificada, como mais tarde se verificou, tocar instrumentos musicais e declamar poesia numa prisão. Almeida Nogueira escreveu vários livros jurídicos, além de suas memórias como jovem estudante na província de São Paulo.
• Realejo é pitoresco. Por incrível que pareça, e por mais escassos que estejam, sempre aparece um no meu caminho. Evoca um tempo de antes. Me cobra um real por um texto que não me agride em nada. Muita instituição de terno e gravata cobra também. E se você não dá, eles tiram. O homem do realejo não lhe tira nada. Chegou um momento na carreira dele que, por qualquer taxa, aquele papagaio vai sacar um papelzinho e lhe entregar. O nome do exercício não está no papelzinho, nem mesmo naquele esboço melódico que, por conta de uma manivela, sai do realejo. O nome do exercício reside no fortuito desse encontro. Não há um motivo prático para que ele ocorra. Há o ato de se permitir, sem prejudicar terceiros, descer do bonde como melhor aprouver, dar o nome que quiser, interagir em, atrever-se em pequenos veios, dir-se-ia igarapés da vida, pelo prazer inexplicável de fazer sem um objetivo definido, reinventando o passeio sem sair da rota.