O Olhar Canino
 
        Numa noite insone vagava pelas ruas. 
        Um encontro. Um cão vadio abana-me o rabo.
        Corpo desengonçado e descarnado, com os ossos em desalinho, meio que sujo, talvez com algumas feridas, com ralos pelos.
        Sentimento estranho, deprimindo-me ao ver tamanha alegria em ser tão desgraçado.
        Acuso-me, culpo-me, defendo-me da sensibilidade das minhas emoções.
        É necessário sobreviver a esta situação de vulnerabilidade, adotar a omissão que nos liberta do falatório da consciência.
        Irmanar-se daquele cão poderia ser o princípio da impotência ante o mundo.
        Melhor seria espantá-lo para longe de mim, como se abandona pensamentos indesejados.  
        Tarde demais! Não bastasse sua atitude cordial, pousou o seu olhar afetuoso sobre mim.
        Impacto. Os cães de alguma forma parecem guardar expressões humanas.
        Compaixão e impotência, quantos não são os cães em situação similar... Quantos não são os homens que não muito diferem desses cães?
        Não deveria ter olhado, deveria ter fingido que não o  vi, não consegui. Lá estava ele que nada tinha a me doar.
        Não pedia-me nada, sua humildade era de fato. Desse-lhe um afago, ficaria feliz.
        Não tive coragem, tive pudor higiênico em fazê-lo. Fui tão prudente quanto estúpido.
        A imagem estava ali, em meio`aquela feiura, aquele quase dejeto, o olhar meigo. Como frasco tão horrendo poderia guardar perfume tão raro? Seriam os cães melhores que os homens? Seriam mais cristãos que a humanidade?
        Foi-se a noite. Após um sorriso sem graça, dei-lhe as costas e fui embora,
mas ficou o olhar a perturbar o pensamento.
        Parecia-me feliz mesmo premiado com vida tão vil. Não bebia fina bebida, mas água que escorria nas sarjetas. Não comia banquetes, mas sobras eventuais, nutridas pelo lixo. Sua saúde dependia do acaso. Sem proteção, ainda assim doava afeto.
        Confesso ter derramado uma lágrima silenciosa. Esforcei-me por não fazê-lo, mas o fiz.
        Vã filosofia. Em meio ao que era horrível e até nojento vicejava pura beleza.
        Desespero silencioso: como resolver um problema desses? Os flagelados da vida, como consolá-los sem tornar-se um deles? Como suprir tanta falta? E como esquecer aquilo que me inquieta?
        E o cão ficou por lá... Em breve, possivelmente haveria de morrer. Mas o seu olhar, o seu canino e afetuoso olhar, insiste em viver.
Gilberto Brandão Marcon
Enviado por Gilberto Brandão Marcon em 01/05/2009
Código do texto: T1570264
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