Lembranças

Enquanto eu fazia aquela travessia escura e apertada, lá fora havia festa. O céu estava escuro, mas estrelado. A lua enfeitiçava a noite, e brilhava feito donzela crescente. As fogueiras crepitavam. Era noite de são João, e mamãe fazia um trabalho muito importante. Colocava-me no mundo. Não sei qual a característica mais importante em mim, quando pequena. Se o choro fácil, riso constante ou o canto que entoava insistentemente. Não cantava tão bem como o canário, tentava porém, imitar o quero-quero, demarcando com a voz o espaço à minha volta. Naquele tempo era fácil crescer, a gente só usava fita métrica. Multiplicando os sonhos, tive sempre um pé aqui, outro em mundos que imaginava. Na escola não só pintava e bordava, também escrevia e fazia versos que mesclavam minha fantasia com fatos reais.

Sinto saudade da velha mestra. Dona Yda Schirmer parecia se multiplicar como uma figueira frondosa. Pena que naquele tempo as manifestações de respeito suplantavam as de carinho, ou Dona Yda teria recebido muitos abraços.

Que saudade de meus velhos troncos! Alguns não resistiram a ação do tempo, outros ficaram para traz, não sei aonde.

Se naquele tempo eu soubesse o que estaria sentindo agora, beijaria minha mãe devagarinho, abraçaria meu pai com toda a força e olharia bem no fundo de seus olhos, assim os entenderia melhor.

À noite, o primo Manuel contava histórias

Então eu e meus irmãos sentávamos à sua volta. A luz fraca do candeeiro ia desenhando aos poucos, nas paredes nuas, os personagens de suas histórias de mares bravios, onde homens valentes enfrentavam a fúria das ondas, enquanto as amadas teciam redes à espera-los.

Ninguém jamais contou tão belas histórias como primo Manuel. Pena que hoje os contadores de história sejam tão poucos!

Minha avó Lilinga era doce como o leite com canela que preparava parar os netos.

Seu Cristino, um velhinho nosso amigo, vendia laranjas. O cavalo era seu transporte. A tardinha ele voltava para casa, sempre com os cestos, um de cada lado. Das vendas do dia sempre sobravam algumas para nos ofertar.

Um dia compreendi que ele, com sua bondade, guardava aquelas para nós. Cristino deve estar lá no meio dos pinheirais onde sempre morou. Gosto de imaginá-lo, descansando à sombra das velhas árvores.

Fui uma criança privilegiada, pois tive como amiga uma menina sábia. Viorema parecia uma índia, pela sua mão entrávamos na mata , saboreando os frutos que ela conhecia e aprendendo sobre todas as ervas. Ela também sabia onde estavam aqueles ninhos feitos de gravetos, mas cuidava para que ninguém os tocasse, porque se as cobras sentissem nosso cheiro, comeriam os filhotes. Viorema identificava os pássaros, sem precisar vê-los, só pelo canto de cada um.

Quietos, junto dela, eu e meus irmãos ficávamos à escuta; Sabiá... Alma de Gato... João de Barro... Tesourinha...

E de repente, ante nossos olhos arregalados, beija-flores a planar bebericavam o néctar das flores. Mais adiante uma cobra. Viorema falava:- Fiquem quietos que ela vai embora. Um dia levou-nos a um lugar mágico; uma clareira enorme com a grama verdinha e ali ficamos um bom tempo jogando bola. Havia também naquele paraíso uma figueira tão grande que nela fazíamos nossas casas de bonecas.

Fui crescendo e amando a vida a natureza e os livros cada vez mais .O tempo passou, Santo Antônio me pegou direitinho, então se sobrasse tempo eu lia. Teatro? -Sim, fazia bem o papel de lavadeira, cozinheira, arrumadeira, professora... Aplausos? Só quando contava histórias para meus filhos, mas isto eu amava fazer.

Hoje se confundem na memória ramos verdes e tenros de minha infância com fortes galhos e raízes que me sustentaram. No meu tempo de agora as ideias se transformam em atitudes criadoras. Já não são apenas sonhos. E aquele caranguejo do mês de junho, canceriano, que siga seu andar, meio de lado, meio sem jeito, mas que use todas as pernas se quiser me acompanhar. Conduzirei meu corpo para onde minha vontade me levar. E quando não mais conseguir suportar o peso de meus galhos, quero também continuar vivendo na lembrança das coisas boas e no coração das pessoas.