A prima
- Se tem uma mulher que eu admiro, essa mulher é a Ema. Afirmava a mãe, terminando de separar os grãos de feijão bons dos ruins, bebendo o resto de leite quase frio, deixado na mesa pela filha mais nova.
Os filhos entreolharam-se abismados com a confissão. Ema não namorava porque tinha gênio intempestivo. Se algum pretendente se atrevesse a fazer-lhe declarações, enviar-lhe versos românticos, flores ou caixas de chocolate, ouviria palavras de desafeto e de revolta, além de ver os versos, as flores ou os chocolates dilacerados em alguma lata de lixo.
- Admiro a Ema porque ela é uma mulher corajosa. Fala na cara da pessoa. Não tem medo. Ela não gosta? Ela não aprova? Ela não simpatiza? Não tem rodeios. Diz na cara para a pessoa desaparecer da frente dela.
Ainda criança, Ema demonstrara os primeiros aspectos profundos de mau humor permanente. Ganhara de presente de dia das crianças um cachorro engraçado que a avó comprara de um vizinho de chácara. Enquanto não a incomodou com seus ganidos noturnos lancinantes, o cãozinho desfrutou de momentos de felicidade, mas bastou um ensaio de rosnado para a menina se levantar e, como uma bola de futebol americana rasgando a noite, expulsar o cachorro cuja ausência seria percebida pelo pai nas primeiras horas de Sol.
- Ah, se eu não admiro aquela danada! Continuava a mãe, contrastando alguns feijões contra a luz. A vista apresentava os primeiros indícios de falha.
Ema já passara dos vinte anos. Morava com o pai. Se os namorados desapareciam, os cachorros fugiam e os vizinhos cortavam caminho quando a encontravam nas calçadas, cônscios do gênio incontrolável, o ladrão que tentara arrombar a casa durante a madrugada pensaria mais detidamente quando quisesse assaltar outra residência.
Tomou comprimido de dor de cabeça antes das 22h. Dormiu. Faltavam poucos minutos para as três horas. Pegou o despertador olhando incredulamente. Quem poderia bater à porta?
Levantou-se, vestiu o roupão, abriu a janela da sala de estar da qual viu um homem, metro e oitenta de altura, meia escura cobrindo as faces, forçando a porta com um pé de cabra.
- Muito bonito! Muito bonito! Gritava, batendo na lataria da janela. Isso é hora de acordar os outros? Não tem o que fazer? Vagabundo! Vai azucrinar o cão com reza! Isso é hora de vir para a casa dos outros?
Estupefato com o enfrentamento da dona da casa, o ladrão foi para direita, voltou correndo pela esquerda, tropeçou na mangueira, esmagou um anão de jardim e saiu correndo em direção ao muro, caindo dele duas ou três vezes até conseguir transpô-lo.
No dia seguinte, ouvindo o ocorrido da madrugada, o vizinho ironizava:
- Se põe até ladrão para correr, imagine o que não faria com um marido fora da linha?
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 30 de abril de 2009.