A GAVETA DAS MEIAS - E O AMOR SENTIDO POR ELAS
A GAVETA das MEIAS – E o amor sentido por elas
Marília L. Paixão
Fazia tempo que ela dizia que ia arrumar a gaveta de meias, mas continuava comprando meias novas e abandonando o projeto de organizar em pares as tantas outras que tinha. Com o tempo uma gaveta foi se transformando em duas e depois em três. Uma era de meias brancas, outra de meias coloridas e uma de meias bem bagunçadas. Era a gaveta da pressa ou das meias que ficavam esquecidas. Finalmente chegou o dia em que a promessa de arruma-lás não podia ser mais adiada. Essa tarefa começou a lhe trazer significativas lembranças. Não demorou e fez uma volta ao tempo.
No seu aniversário de não sabia quantos anos tinha ganhado de uma amiga de outra amiga uma meia listrada azul clara e branco. Uma meia de inverno bastante longa. Deveria cobrir toda a perna. Quando abriu o presente e deu de cara com a meia pensou que a colega tinha sido um doce, mas que a meia jamais seria usada. Nunca tinha ganhado tantos presentes como naquela festa! E de todos os presentes o único que tinha até hoje era aquela meia.
Não saberia contar quantas mudanças de casas, cidades, guarda-roupas e gavetas aquela meia já tinha sofrido. Ela também, a dona da meia, tinha sofrido todas essas coisas. E se comparasse o par de meias com a dona tinham muitas coisas em comum. Primeiramente a meia tinha envelhecido e a dona também. Tinha perdido metade da cor e a dona dela tinha perdido a muitas cores dos sorrisos. A vantagem era que a meia azul clara listrada de branco não sabia o que era antidepressivo, atestados médicos e ter ou não ter bens.
Dependendo de certas épocas talvez ter sido meia teria sido melhor que ser gente. Mas nem sempre o ser humano pode escolher o que ele gostaria de ser. E quando se trata de escolher o que se gostaria de ter até que a pobre meia não ia poder reclamar muito. Sempre teve gavetas bonitas. Nunca provou de quebra de status. Nunca soube de quando sua dona precisou vender o carro e o tempo que demorou a comprar outro. Aquela meia nunca poderia reclamar de nada. Sempre teve vida boa com o melhor sabão em pó e o melhor amaciante.
Nunca tinha sido enganada e nunca fizera papel de trouxa. Nunca teve insônia. Nunca foi pintada ou escovada por mãos pesadas e ninguém nunca lhe disse que precisava tomar um sol ou fazer regime. Nunca chorou e nem teve que engolir mentiras. Nunca esperou por mudanças que não aconteceram ou promessas que não foram cumpridas.
Se alguém disser que as meias não vivem dores, mas também não vivem amores, até que pode ser...Mas como garantir que as meias não sentem prazeres ao serem usadas? Quando elas estão bem acomodadinhas nos pés da gente fazendo parte de todos os nossos movimentos elas devem viver lá o grande momento delas. Assim como sentimos paixão por certas coisas, certas coisas devem sentir paixão pela gente. Pois se as coisas não são o que acreditamos que elas são, por que tanto apego por elas?
Este texto faz parte do IV Desafio Recantista de 2009.
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