A GAVETA DAS MEIAS - FÉRIAS EM FOTOS
A GAVETA DAS MEIAS - FÉRIAS EM FOTOS
Ana Marques
Entrou em casa mais lentamente do que era costume. Seguiu para o quarto em vez de percorrer o corredor até à cozinha. Sentou-se na cama. No lado que até então havia sido o dele. Abriu a gaveta das meias. Retirou-as cuidadosamente, colocando-as em cima do edredão florido, deixando à mostra a colecção de fotos. O relógio bateu as cinco horas.
Acariciou as películas demoradamente. Tirou uma delas.
Ela e ele. Férias românticas em Toledo. Os dois abraçados junto aos moinhos de vento imortalizados pelas aventuras de D. Quixote. Os dois com um sorriso radiante nos lábios, um brilho no olhar, em plena paisagem manchega. Pescou outra foto da gaveta. Istambul, a cidade dos sete montes. Os dois novamente. Abraçados no barco que percorre o Bósforo. Encantados com a beleza das mesquitas mais famosas. Apaixonados como se fossem jovens noivos.
Nova foto nas mãos. E as lágrimas caíram bem no meio da imagem. A pirâmide de Kukulkan em Chichen Itza no México, a maior pérola que restou da civilização Maia. Mais uma vez os dois agarradinhos. Pareciam verdadeiramente felizes numa viajem de sonho.
Foi uma trémula mão que retirou da gaveta das meias uma outra fotografia. Já mal conseguiu visualizar a imagem de tão carregados de água estarem os olhos. Seria Edimburgo?
Veio-lhe à lembrança as palavras da mãe muito tempo atrás. “Ao menos tu passeias. Muitas outras mulheres apanham e nunca saíram de casa. Por isso não te queixes.”
Ainda outra foto na mesma mão nervosa. Já só conseguia adivinhar o local. Paris, junto à Torre Eiffel. Tinha sido o auge da relação. A melhor viagem de sempre.
Cuba, a beberem rum na esplanada junto ao mar. Londres, Barcelona, Egipto!
Aquele amor, nas férias, era perfeito. Ele parecia ser um outro homem.
Largou as fotos junto das meias em cima da cama para atender o telefone.
Era do hospital.
As mãos subitamente haviam ganho uma compostura serena. Arrumou meticulosamente as fotos colocando as meias distribuídas por cima com uma regularidade geométrica. Como ele gostava.
A voz da mãe regressava implacável. “Chamava-te gorda? Porque seria? Pára de te fazeres de coitadinha. Tenta ver a garrafa meia cheia em vez de a veres sempre meia vazia. Pelo menos tens saúde e ninguém te pode apontar o dedo na rua. Isso é tudo o que conta.”
Um sorriso começou a nascer-lhe nos lábios. Pensou que daí em diante já não teria necessidade de conservar as fotos. As provas da pretensa felicidade haviam caducado. Agora iria iniciar uma nova vida. Estava viúva. A gaveta das meias cumpriria agora e apenas a função a que se destinava: guardar meias.
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Este texto faz parte do IV Desafio Recantista de 2009.
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