A GAVETA DAS MEIAS – Colecionando os passos da vida
Abriu-a com dificuldade. O móvel antigo demonstrava os sinais do tempo, e na velhice das coisas inanimadas começava a endurecer as juntas. Precisou de força para arrastar a gaveta que pareceu-lhe um membro atrofiado de um corpo envelhecido.
Por que esta sensação a invadiu naquele momento? Fingiu não saber. Preferiu ludibriar os pensamentos. Afinal, não estaria procurando os documentos? Jurou que pudessem estar acomodados em alguma daquelas idosas gavetas da cômoda, no quarto de sua mãe.
Mas, foram as meias que encontrou. Conseguiria enganar-se desta vez, simulando não saber da existência daquele aposento de meias? Mentiria a si, dizendo não se lembrar da coleção que a mãe teimou em perpetrar durante todos aqueles longos anos? Teria esquecido, por acaso, as inúmeras batalhas que ela mesma travou, no intuito de que aqueles pares inseparáveis fossem despachados para aquecer alguns pés necessitados? Por quantas vezes viu a colecionadora apaixonada derramar a chuva de meias coloridas sobre a cama, só para ficar contando as suas histórias?
De quando os pezinhos fofos, do irmão recém-nascido, vestiram lã amarela para espantar a Icterícia que infectava os bebês ainda no hospital. Da vez que as suas pernas finas foram cobertas por listras coloridas que destoavam do vestido vermelho de bolinhas brancas. O que a fez voltar correndo e chorando para casa, para esconder a vergonha das amigas que riram sem parar.
Talvez tenha sido neste dia que abominara de vez a mania ridícula que a mãe tinha de guardar meias. Queria jogar fora aquele protótipo de zebra multicolorida. Queria esquecer aquele mico 7/8 que lhe cobriram os joelhos, mas não esconderam o vexame estampado em seu rosto vermelho carmim.
“Nada de lixo!” Ela lhe dissera. “De nada adianta tentar livrar-se dos momentos dolorosos. Melhor é guardá-los numa gaveta quietinhos e, de vez em quando, voltar a olhar para eles. Assim, quando menos esperar a dor terá desaparecido. Não terá sido descartada, simplesmente terá sido vencida.” Qual menina de 10 anos entenderia isto, numa hora daquelas?
E a gaveta foi se enchendo. Do branco da primeira eucaristia. Do roxo da adolescência. Da renda preta de mulher. Da transparência do casamento. Da lã pura dos dias de amamentação. Do branco do batizado...
Os netos gostaram da idéia e a coleção da avó foi crescendo. Porém, havia uma condição: Só podia entrar na gaveta as meias que tivessem marcado algum passo importante, testemunhado algum deslize ou aquecido algum pé vexado, como o protótipo de zebra multicolorida.
Assim, a história foi sendo guardada na gaveta, em capítulos. Todos compostos por meias.
E assim, naquela tarde, não abrira a gaveta por acaso. Sabia que ela guardava tudo, menos documentos. A gaveta guardava a coleção da sua mãe. As lições, os conselhos, os cuidados, os carinhos, o amor com o qual ela lhes cobriu da cabeça até os pés. A gaveta não guardava documentos e nem somente meias, a gaveta guardava a própria mãe.
Foi isto que veio procurar! Precisava encontrar a mãe que ensinara que a vida lhe causaria dor, mesmo quando não estivesse usando um ridículo par de meias 7/8 listradas. Precisava achar a mulher que não a deixou jogar a dor no lixo e a guardou na gaveta em forma de meia. Pois, estava ali, naquele momento, para guardar a maior dor de toda a sua vida.
Buscou dentro da bolsa as meias cor-de-rosa que a mãe estava usando nos últimos instantes vividos no hospital e, acomodou-as quietinhas - conforme aprendeu - bem ao lado das listradas. Como se a dor vencida do passado pudesse amenizar a dor dilacerante do presente. E entre lágrimas e soluços - como a própria mãe ensinou- para sempre, na gaveta, a dor da sua partida ela guardou.
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Este texto faz parte do IV Desafio Recantista de 2009.
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Léia Batista