Invejoso ou vítima?

          Conheci padres vaidosos.
          Aos mais chegados, repetia uma frase que ouvi muitas vezes nos corredores dos seminários onde estudei: Vanitas vanitatum et omnia vanitas. 
         
E não me venham com vanitas vanitatis.  Na Vulgata, São Jerônimo, responsável pela versão da Bíblia para o latim, lá no século IV, escreveu vanitas vanitatum.
         
Se o leitor desejar conhecer melhor esse  pensamento bíblico, procure-o no Capítulo 1, Versículos 1-3, do Eclesiaste. A tradução?: Vaidade das vaidades e tudo é vaidade. E que se aplique essa lição onde melhor ela couber.
          Agora, padres invejosos são mais difíceis de serem encontrados. Pelo menos os reverendos com os quais mantenho laços de amizade não podem ser acusados da prática deste pecado capital. 
          Vejo-os sempre satisfeitísimos com o que o Céu lhes dá, desde sua Ordenação.

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          Mas por que todo este lero-lero em torno dos nossos presbíteros e a inveja? Prossiga, e saiba por que tratei deste assunto.  
           Em um conto de Aloísio Azevedo descobri até onde pode chegar um sacerdote num momento de irrefreável desgaste emocional.
          Aloísio começa seu conto descrevendo, e de forma magistral, um final de tarde. 
          Diz ele: "Era uma tarde de novembro. O sol acabava de retirar-se naquele instante, mas a terra, toda enrubescida, palpitava ainda com o calor dos seus últimos beijos."
          "O céu - prossegue - vermelho e quente, debruçava-se sobre ela, envolvendo-a num longo abraço voluptuoso... e as árvores concentravam-se, murmurando, em êxtase, como se rezassem a oração do crepúsculo."
          E nesse cenário crepuscular, aparece um padre.
          Depois de um passeio guardando o mais absoluto e profundo silêncio, ele se senta "triste e preocupado, nos restos de uma fonte de pedra..."
          E, de imediato, lhe vêm à memória, "com uma reminiscência dolorosa, todas as suas aspirações da infância".
          Recordou que o haviam enterrado "numa casa abominável para ser padre; que depois lhe haviam dado "uma mortalha negra"; e ainda lhe disseram: "Estuda, medita, reza e faze-te um santo."
          E mais: ... "quando vires uma mulher, cujo olhar, úmido e casto, te faça sonhar os deslumbramentos do amor, bate com os punhos cerrados contra o teu peito e alanha tua carne com as unhas, até que sangre de todo o veneno da tua mocidade!"
          "Fecha-te ao prazer e à ternura, fecha-te dentro de tua fé, como se te fechasses dentro de um túmulo".
          E diz o conto: "Desde que o destinaram a padre, sentia-se arrastado para a tristeza e para a solidão..."
          Num determinado momento, pensou em morrer.
          "Todavia...replicou-lhe do íntimo da consciência uma voz meiga, medrosa, quase imperceptível - todavia, o amor deve ser bem bonito!" E ele chorou.
          Foi aí que, em meio à sua meditação, ele ouviu um passarinho que, ao lado de sua companheira, fazia uma inocente cena de amor...
          - "A fêmea estendia a cabeça ao amigo e, enquanto este lhe ordenava as penas com o bico, ela, num arrepio, contraía-se toda, com as asas levemente abertas e trêmulas."
          Diante desse momento de amor, que fez "o jovem eclesiástico"?  Pasmem os senhores! Ele sacou do seu guarda-chuva, "e com uma pancada lançou por terra o amoroso par".  Os passarins, "ainda palpitantes de amor, caíram estrebuchando" aos pés do sacerdote.
          E conclui o conto: "No horizonte esbatia-se a última réstia de sol e o sino de uma torre distante começou a soluçar Ave-Maria."
          Acusaram-no de invejoso!
          Faço esta pergunta: seria o padre deste conto um invejoso?  Ou vítima de um passado destruidor dos seus melhores sonhos, condenando-o a viver in-fe-liz? Acontece.
          
                 

Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 26/04/2009
Reeditado em 24/08/2009
Código do texto: T1560533