VIDA À PRIMEIRA VISTA
Beijo a face adormecida de minha filha e silenciosamente me despeço. Esbarro no livro de capa dura dos contos ilustrados de Andersen ao lado da cama. Reconheço o livro de minhas primeiras letras...
O caminho para o trabalho é marcado por ternas recordações... As botas ortopédicas surradas na ponta, a primeira vez que quebrei o pé ao pular de uma escada, o enterro do besouro numa caixa de fósforos, a bicicleta remendada com a fita adesiva preta, os balões coloridos das festas de aniversários, a fantasia de cigana...
Os personagens mirins me acompanham nas matinês que organizo no pensamento. Os nomes surgem como legendas dos rostos arredondados. As crianças me reapresentam a menina travessa em cada narração. De repente, a infância surge no horizonte cotidiano como uma real linha de sorriso.
Entre os processos cotidianos, encontro os primeiros desenhos, as nuvens coloridas, o sol cheio de traços e sem conteúdo... Leio as primeiras redações, encorajo-me às primeiras rebeldias.
O dia corre em paralelo. Anoitece e ainda me procuro nos olhares infantes que cruzam com os meus. Tento me encontrar nas pequenas mãos, nos sorrisos banguelas... Observo minha filha compenetrada no dever de casa, a seriedade com que pinta os gestos expansivos enobrecendo cada resposta em seu caderno de português...
Viajo nas fotografias distantes dos álbuns esquecidos. Reconheço-me no perfil sorridente que desfila nos retratos. Com o vestido xadrez, a menina de três anos posa falando ao telefone, assume a maternidade com a boneca Mãezinha no colo, brinca com o irmão bebê...
As fotos se repetem como em tantos ensaios fotográficos infantis, mas, de repente, encontro o grande retrato em preto-e-branco. Impressiona-me a seriedade da menina boquiaberta, com enorme óculos de aros escuros e um volumoso livro aberto, apoiado entre as pernas cruzadas.
Distante das fantasias, a cabeça inclinada tenta equilibrar as grandes lentes... Seqüestro o olhar do meu pai e tento compreender o mundo adulto na leitura do volumoso livro aberto no colo. As primeiras lentes para a realidade, o mundo descoberto com a grandeza dos novos focos e a expressão perplexa de minha face menina.
O aumento da visão desequilibra o semblante infantil. Aprofundo-me no retrato e compreendo, no fundo do olhar, a inquietação do amadurecimento... Talvez o significado para a arrebatada paixão pelo conhecimento ou, simplesmente, o início da busca...
A necessidade de compreender a leitura possível, perceber o florescimento da vida, caminhar no horizonte amadurecido de vivências... são metáforas impregnadas em minhas necessidades vitais, códigos revelados em novos escritos, significados traduzidos em novas figuras de linguagem.
O livro aberto é a imagem da projeção do mundo, a inserção da criança nas primeiras leituras, a escolha da direção rumo aos horizontes do conhecimento...
Tento em vão identificar o livro da fotografia, mas ele permanece escondido na biblioteca de minha infância, aberto apenas para o olhar perplexo da menina de três anos. Pego o livro de Andersen na cabeceira da minha filha e releio a “A menina dos fósforos”. Preencho-me com um novo sentimento. Não sou a criança! Sou o olhar maternal que sente no próprio ventre o abandono da personagem. Sou a cidadã que se indigna com a injustiça social, o desvalimento infantil e a fragilidade dos mais fracos projetados no conto infantil como retrato da realidade...
As tantas sensações que me dominam me fazem compreender que não tenho a miopia do meu pai... Os significados que ele encontrou convergem no horizonte de suas vivências, na amplitude de sua maneira de descobrir as situações...
O amadurecimento abre novos focos de percepções, liberta as existentes verdades para a conquista de lentes apropriadas às minhas peculiaridades...
Emolduro o retrato na grandeza de sentir a vida à primeira vista. Desnudo-me delicadamente das lentes do olhar paterno e assumo o próprio olhar para a realidade.