Coração Rasgado
Assim que passei uma olhada na sala, pude perceber que aquele colega era diferente. Não era nada visível, ia além do modo do falar, do andar, do fazer. Mas por não ser algo que pudesse ser identificado, deixei de lado, e os anos correram.
Sinto dizer que somente após minha transferência, numa conversa fiquei sabendo do que meu colega havia passado, e o porquê daquela sensação que senti ao olhar para ele pela primeira vez.
Josely era o nome da sua esposa. Ela foi a primeira namorada, seu primeiro amor. Casaram ainda jovens, construíram cada espaço da casa formando um ninho que iria receber a semente do amor que já brotara no ventre da sua amada.
Eram felizes, e se contentavam com o pouco que tinham. O sogro dera um pedaço do terreno, e ali ele construíra uma casa de apenas um quarto, sala, cozinha e banheiro. Isso bastava.
Pela manhã saía para trabalhar, depois de sua amada ter preparado com muito carinho um café da manhã reforçado, e ser acompanhado até o portão onde ali mais uma vez recebia um beijo de despedida e já sentindo saudade, perguntava-lhe qual era o desejo do dia. Ela ria e dizia que o bebê naquele dia não desejava nada, a não ser à volta do seu papai.
Pedro ia para o trabalho, satisfeito da vida, e sempre fazendo planos para o futuro. A esposa entrava, dava um beijo nos pais que moravam na parte da frente, e ia cuidar das suas tarefas, pois sabia que os dias estavam próximos, e queria que todo enxoval estivesse comprado, e pronto para a chegada do seu bebê. Pensava em ir ao centro dá uma olhadinha nas novidades, pois com o dinheiro da quinzena poderia comprar o berço.
A mãe chegou pra saber se precisava comprar algo pra o almoço, e viu que o genro como sempre cuidara de tudo. Era um filho que Deus lhe dera, pois nunca viu um amor tão grande, até se emocionava quando via a filha no final da tarde, indo até o portão esperar o retorno do esposo. Lembrou que quando era moça era do mesmo jeito, e sua filha puxara até na maneira de amar à sua mãe. Amava de corpo e alma, e agradecia a Deus por ela ter encontrado um esposo que correspondia na mesma medida.
Preocupava-se como toda mãe com a hora que a filha daria a luz, e fazia uma oração em silêncio, pedindo que Deus não deixasse acontecer nada, pois não sabia o que seria dela se perdesse sua filha e do seu genro por tanto amar a esposa.
Ela não sabia, não percebia que a morte não viria na hora do parto, nem que ela viria com uma dupla missão. Se ela soubesse...
Josely foi lavar roupa, eram algumas peças do enxoval que precisavam ser lavados e passados. Embora o marido e a própria mãe pedissem que ela deixasse de fazer esforço, dizia que aquele prazer ela queria sentir, pois estaria enquanto lavasse as roupinhas conversando com seu filho no ventre. Todos riam e assim naquele dia ela iniciou sua almejada tarefa. Cada peça que abria, sorria,cheirava, e colocava numa bacia separada para a ocasião.
Havia um arame que servia de varal, e ali todos estendiam suas roupas. Josely, depois de enxaguar cada peça, foi estendendo uma por uma, por último deixou um lençol de berço. Quando jogou o lençol, o mesmo pegou num fio de rede elétrica que passava ali perto, e a descarga elétrica matou aquela mãe de primeira viagem instantaneamente. Ainda se ouviu um grito, quando correram, a morte já cumprira sua dupla missão: mãe e filho partiram.
O telefone toca.
A voz da sogra chorosa dizia: Pedro corre para o hospital... Josely...Ele entendeu que a esposa tinha passado mal, socorrida...Mas quando ele chega lá uma assistente social lhe esperava para lhe dar a pior notícia, de que a sua amada e seu filho tinham partido.
Chorar não era suficiente. Gritar? Pra quem? Pra quê? Por que eu? Por que não ficou um? Dizem que a dor rasga o coração, e naquele momento ele sentiu que o seu havia sido rasgado de alto abaixo. Viver ou morrer não fazia diferença.
Alguém cuidou de tudo. Dopado, olhava para seus sogros e via dois corações dilacerados. A hora de olhar para o rosto da amada dentro do caixão. O filho deitado no outro... Meu Deus! Só pude conhecer o rosto do meu filho na hora da morte!
Todos choravam. Médicos, enfermeiras, parentes, colegas de trabalho, vizinhos, etc. O clamor foi geral. Cada um que presenciou em algum momento, seja no hospital, seja na funerária, no velório, todos se comoviam.
Chegara à hora da despedida. Antes de fechar o caixão Pedro dá um beijo na testa da amada, depois vai até o filho e faz o mesmo. As lágrimas descem sem sentir, fecha o caixão do filho, fala algo para os parentes que pegam à alça do caixão maior. Enquanto ele como um náufrago abraçado ao caixão do filho, segue atrás.
Quando o conheci já havia se passado quatro anos, e ele continuava só. Não conseguira se refazer. Sinto não ter percebido que por trás daquele silêncio, daquele olhar tão escondido, havia um coração que não parava de sangrar.