Objetos parados no tempo
Sob certas condições a cidade é uma proposição de vida e como satisfatoriedade realiza o seu cotidiano instável. Aos poucos vimos à cidade crescer e com ela à ingenuidade perdendo o seu tom de acalanto através do puro quixotismo. É o caso da antena roubada do telhado, quando dei por mim, já havia desaparecido. Devia saber que a cidade está acima dos ladrões, todavia existem ladrões em todos os pontos cardeais. Pois subiram no telhado e levaram a antena da internet numa noite de ausência. Ningjuém viu. Ninguém sabe de nada.
Antigamente o sino da Igrejaz Matriz badalava a conhecida canção: pirão sem sal. Repetidas vezes. O badalo de bronze da torre alta, muito alta, não entoa mais a canção da missa das dez. É kafkaniano o sumiço do badalo e a bocarra do sino sem voz que habita a torre coberta por estranha discrição. Habita agora um silêncio na pauta sem o canto costumeiro. Talvez pesasse uns vinte quilos de puro bronze. Quando falamos a respeito às pessoas deixam cair o queixo, a maior parte delas nunca percebeu o vazio de alguns anos. Não virou manchete, não saiu no jornal, portanto ninguém sabe. Talvez tenha sido removido para manutenção. Não sabemos. O fato é que há bastante tempo não existe mais o “pirão” da canção domingueira, só o sal. A canção que embalava a minha antiga alma ingênua. O desaparecimento do badalo tem valor explicativo simbólico para outros sumiços.
Estranho a cidade com seus arroubos de clássico sem busto em homenagem ao fidalgo Martim Afonso de Souza. Da vaga inexistência de lembrança histórica dessa importante passagem náutica, com história de naufrágio no mar indômito por esta estremadura de sonho e lirismo. Pois cidade pequena é um misto de mistério e escoamentos permanentes da imaginação. Basta sacolejar o sache das lembranças para aflorar as essências indispensáveis a vida cheia de sonhos e visões. Lá estamos nós. Uma geração de jovens entusiastas da cultura e da luta pela liberdade. Aos poucos tudo foi se apagando. O antigo Cine Teatro Independência praticamente abandonado. O Consulado Italiano em pleno centro lembra até hoje as ruínas da Itália arrasada no final da guerra. Todo esforço de diálogo fracassado sem linguagem protocolar diplomática mantém a estrutura falida.
Por sorte existe a Coxilha entre o mar e a lagoa. Meu bairro de lirismo. Mesmo com o Esporte Clube Rio Branco caindo com suas visíveis arquibancadas devoradas pela erosão do tempo e perigosamente sem manutenção. Existe o ar da Coxilha e o ponto alto: bar do Mariano. Um lugar de samba e confraria. Um ambiente de operários onde residem os reflexos da memória do antigo Barracão.