"Câmera quem?" ou "O que pode acontecer quando o Cinema vai até você"
A coisa é simples: você está lá, na sua casa, assistindo uma partida de futebol enquanto conclui que já é hora de trocar a cueca de antes de ontem, quando, de repente, um cara com sotaque estranho, jeito diferente e roupas chamativas toca a campainha. Não, não é uma testemunha de Jeová. Pior. É um integrante de uma equipe cinematográfica.
Durante o tempo em que sua mente tenta entender aquela miríade humana que sorri gentilmente e desata a falar, você recebe um papel onde está impresso um pequeno texto. Nele estão contidas as informações necessárias, que não podem ser lidas no momento, pois o homem postado no seu portão ainda continua falando e explicando algo. Seu ouvido capta as sentenças proferidas, suas mãos sentem a textura do papel, seus olhos fitam ora o texto, ora o interlocutor, e, enquanto a boca desenha um sorriso amarelo, sua mente grita o óbvio: “mas que merda, tou perdendo o jogo!”.
No momento em que Wayne Rooney desperdiça o primoroso cruzamento de Ryan Giggs, você finalmente entende o motivo daquela aparição. Sua rua, tão pacata, tão comum, virou uma das locações do filme que estão rodando. Não é dito muito sobre o roteiro. O que importa é que vão passar sete dias filmando, com atores de fora, “importantes”, que vai ter câmera na grua, e que aquele beco onde, em 1999, você tarou sua prima bêbada, vai ficar repleto de refletores e técnicos, pois lá, exatamente no canto onde você levou um tapa da mesma prima ébria, será o local onde Narciso vai levar um tiro.
A surpresa impede que um “... E quem porra é Narciso?” brote dos seus lábios. É muita coisa acontecendo. Parece sonho de criança, parece brincadeira. Cinema é legal, atores são legais, e quem vai ser o diretor? Como é o nome do filme? Vai dar pra ver tudo, quem sabe pedir uns autógrafos, fazer perguntas pro gaffer... E o melhor, você também é alertado pelo homem que lhe entregou o papel que, apesar disso, tudo vai ocorrer na maior normalidade. O cotidiano de cada morador não vai mudar. Maravilha. Com agradecimentos, o integrante da equipe cinematográfica, possivelmente um assistente de produção, se despede educadamente. Você sabe que perdeu o primeiro tempo, mas não sabe que perdeu sete dias de sua vida. Por isso, dorme bem, mesmo com o Manchester tendo empatado dentro de casa.
No badalar da primeira hora de gravação, você, de tão ansioso, já está parado perto dos equipamentos. Tudo está pronto, vão rodar. O fotógrafo dá as últimas instruções para os seus assistentes, microfones são posicionados, o diretor observa o vídeo-assist, os atores – epa, aquele é o Cauã Reymond? – em suas marcas. É hora de ver a mágica acontecendo. Você mal lembra que deixou o som ligado. A moça aparece com a claquete. Você se anima ainda mais. Então, antes que o take se inicie, algo acontece. Uma voz grossa, potente, é ouvida, amplificada. “Silêncio na rua, por favor!” Você não entende completamente. “Ninguém se mexe! Ninguém”. Sua reação é rápida. Posição de estátua. “Quem deixou o som ligado?” A espinha gela... Não pode ser que... “Ei, você!” Um dedo te denuncia. A voz amplificada pelo megafone, que mais parece a trombeta do fim dos tempos, ataca. “Desliga o som!”. É o anjo do apocalipse dizendo que você não será poupado. E adeus The Smiths na maior altura.
Os dias passam e a sua rotina não mais te pertence. Em uma manhã, é acordado por barulho de ferros e gritos. Estão gravando a cena em que Narciso, junto com amigos, entra em uma briga de gangues. Mas briga de gangues tão cedo? Liberdade artística. Depois de tomar café e se arrumar para o trabalho, alguém te avisa que não pode sair de carro, pois as ruas estão fechadas até terminarem a seqüência da briga. Falam de “noite americana” e você, que acha que Truffaut é marca de comida enlatada francesa, é obrigado a ligar pro chefe e explicar que vai chegar atrasado. Em outro momento, as luzes são desligadas para que possam trocar algum fio que caiu. A companhia responsável por fornecer energia chega atrasada e pede desculpas. O Microsoft Office não salvou o seu trabalho completo. Você pensa em como vai pedir desculpas para seu editor de São Paulo.
São tempos amedrontadores. Vozes estranhas te pedem para fazer certas coisas; passos pesados para lá e para cá; sangue (falso) no chão. O barulho vara a madrugada e você, instintivamente, começa a rezar para que tudo dê certo no primeiro take. Dificilmente dá. E ainda faltam 48 horas para tudo acabar. O horror, o horror!
No beco tudo virou fumaça cenográfica. Luzes bruxuleantes, uma turba de técnicos vestidos a caráter, vozes, pessoas estranhas... O megafone tirânico ordena que tudo, menos o set, fique apagado. Você está no quarto, deitado na cama que faz barulho, sem poder se mover. A fumaça já toma grande parte dos aposentos. Mais gritos. O nome Auschwitz aparece na sua cabeça, e você tenta manter a sanidade, pensando no que vai fazer depois que tudo acabar, no que fazia antes de tudo começar, nos feriados, na prima que era gostosa e ficou gorda, nos jogos que vão passar. Cinema é legal, mas tem algo estranho, algo que não comentam quando falam da sétima arte, que não aparece no making of.
Narciso precisou de 20 takes para morrer direito. Depois disso se levantou, espanou a sujeira do corpo com as mãos, deu um “obrigado” para todos da rua que observaram a ação, e foi embora comemorar com a equipe.