Quem é cego?

Faz um tempo que estou tentando me livrar de uma emoção que parece já vir embutida em todos os seres humanos: pena. Durante todos os meus 24 anos, senti pena de gente que é cega, surda, muda, deficiente física, mental, velhos que se movimentam com dificuldade, crianças pedindo esmola na rua, pessoas de uma perna só equilibrando-se num cabo de vassoura que serve como bengala, cachorros de três pernas e tantas outras coisas e situações.

É humano e bonito sentir essa alfinetada. Se pena for um sentimento trabalhado, tranforma-se em solidariedade, que é o primeiro passo para mudar uma fração da realidade crua que vivemos todos os dias, mas se não, se for pena pura e nua, serve para quê? Para que nos sintamos seres superiores. Coitada daquela senhora que não enxerga! Corta o coração uma criança tão pequena, e já presa numa cama! E quantas vezes lágrimas vieram de repente ao vermos um de nós tentando encontrar uma campainha, tateando as paredes: Eu, depois disso, enxuguei minhas lágrimas, senti-me humana o suficiente para um dia porque a condição de outra pessoa fez minha alma tão sublime soltar umas míseras lágrimas e depois esqueci. Que baixeza...

Comecei a ler um livro chamado Conversations with God, em que Donald Neale Walsch diz ter um diálogo com Deus através de cartas. Como hábito de sempre, ele costumava escrever cartas onde despejava sentimentos, opiniões, dúvidas e etc. Um dia, resolveu escrever uma carta para Deus e as palavras vinham de sua caneta como se ele estivesse sendo guiado por um poder maior. Controvérsias à parte e clamores de blasfêmia desferidos contra o autor sobre esse livro, gosto muito da leitura, é profunda e me fez refletir demais. Recomendo. Bom, numa das falas de Deus, Ele explica que cada ser humano escolheu sua condição atual muito antes de nascer, um desejo da alma numa tentativa de evoluir e alcançar o máximo que pode ser. E, para mim, fez todo sentido.

Quem sou eu para achar que uma pessoa desprovida de visão é menos feliz e menos completa do que eu? Será que eu sou total apenas porque minhas funções corporais trabalham em uníssono? Por que eu achei estranho quando um homem sem as duas pernas sorriu para mim num dia em que estava brava com alguma coisa ínfima? E por que, meu Deus, tais pessoas atraem todos os olhares onde quer que estejam? Por que as crianças portadoras de algum tipo de diferenciação são mesmo diferenciadas, destacadas? E quem escolheu essa palavra, deficiência, como descrição?

Oh, quantos pensamentos nobres! Mas eu ainda não tinha passado por um teste para ver se minha teoria e tentativa de mudar operaria realmente uma diferença na minha pena. De todos os que já citei até agora, os que profundamente me deixam com um nó na garganta que não consigo engolir por meia hora são os cegos. Sempre penso em mim se estivesse no lugar deles, sendo tão amarga às vezes, reclamando de coisinhas. Eu, certamente, não teria paciência para tatear todas as paredes, guiar-me através de cheiros e reconhecer pessoas pelas vozes. Pena, pena, pena.

E a vida não é irônica? Ontem cheguei ao prédio onde moro e já ia abrindo a porta do hall principal, passando pelas caixinhas de correio que ficam entre a porta principal e esta, onde um homem de meia-idade checava se tinha correspondência e dizia em voz alta: “Ou o carteiro não veio hoje ou não tenho cartas mesmo”. Eu ia dizer que geralmente o carteiro vem entre 12:30 e 1:30 da tarde, quando ele perguntou antes de eu abrir a boca: “Tem alguém aí?”. E mirou os olhos azuis para cima, muito acima de onde ficava meu rosto. Ora, ora, o homem era cego.

Instantaneamente, minha válvula de pena começou a operar com força total, o nó veio correndo sentar na minha garganta, mas eu faria diferente dessa vez. Talvez aquela pessoa não precisasse da minha ajuda. Mantive a porta aberta e disse que ele podia passar, que eu estava segurando, mas isso eu faço para qualquer um, por gentileza mesmo. Ele passou e seguimos para o elevador, ele na frente e eu logo atrás. Ele tateou a parede à procura do botão e eu permaneci observando. Quando entramos, porque eu estava mais perto dos botões, perguntei para onde ele ia, que número queria que eu apertasse, e isso eu também faço sempre. E ele disse: “Thr – three, please”. Além de cego, era gago.

O nó na minha garganta, sentado, começou a pular e uma lágrima veio me cumprimentar, mas eu mandei os dois à merda e fiquei firme, sem o direito de sentir pena do homem. Esperamos em silêncio pelo andar dele, que chegaria primeiro. O que eu diria? “Viu como o tempo está louco? Uma hora chove, outra hora faz sol?”. Que falta de jeito a minha!

Finalmente, a porta se abriu e ele perguntou: “É o meu andar?”. E eu disse que sim. Ele: “Ha-have a nice day”, tentando olhar para o canto de onde vinha minha respiração ou meu cheiro, com os olhos azuis mais lindos que já vi e um sorriso largo de quem acabou de tomar aquele café santo para começar o dia. Eu, engolindo o nó sem água para ajudar: “You too”. Ainda tenho muito para treinar...

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