Passeio Diário

Maria Rita vinha andando pela calçada pensativamente. Não era habitual aquela forte introspecção. Regra geral caminhava atenta a todas as pessoas do bairro, cumprimentando-as pelos nomes, oferecendo-lhes um largo sorriso. A maioria dos moradores era constituída por idosos reformados que passavam considerável parte do tempo à janela, observando o movimento da rua e retribuindo às saudações de transeuntes simpáticos como Maria Rita.
Estranhou o Sr. Vicente. Estranhou o Sr. Bernardino. Estranhou a Dona Piedade. E não estranharam os outros espectadores de janela por ainda não terem acordado da habitual sesta. Maria Rita não havia correspondido às boas-tardes.
Nenhum dos mirones caiu na tentação de lhe levar a mal. Conheciam-na bem. Desde gaiata. Haviam-se deleitado a vê-la crescer e depois desabrochar passando pela mesma calçada ao longo de duas décadas.
Naquele dia Maria Rita estava absorta nas suas ideias. Não viu ninguém. Não escutou palavra alguma durante o percurso costumeiro de retorno do trabalho.
Mordia o lábio inferior em jeito de preocupação. E congeminava. Tinha um dilema em mãos. Não conseguia decidir qual a melhor abordagem ao problema. Deveria considerar o assunto do ponto de vista prático? Ou por outro lado, valorizar em primeiro lugar a questão ética que se impunha?
Era neste estado de dúvida que Maria Rita avançava pela calçada sem se dar conta que estava sendo cumprimentada pelos usuais inquilinos que àquela hora se demoravam nas suas respectivas janelas de rés-do-chão.
Dona Piedade meses mais tarde, à hora do rotineiro regresso, haveria de se lembrar desta tarde de abstracção, ao mirar o protuberante ventre da moça, coberto por um vestido cor-de-vinho.

AnaMarques
Enviado por AnaMarques em 22/04/2009
Reeditado em 22/04/2009
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