Tall Ships
Apertei o último botão da “samarra” e dobrei o grande colarinho forrado de pele de carneiro de forma a proteger o pescoço e os ouvidos do penetrante vento gelado que fazia sentir-me miserável e indefeso, mas ali estava eu estendido de costas sobre o madeirame do convés que ainda fedia a estopa e piche da meticulosa calafetagem a que havia sido submetido no estaleiro.
Encoberto pelos dóris encastelados e já peados para a grande e aventurosa viagem, eu me perdi em pensamentos observando a magestosa mastreação apontando o céu, identificava as retrancas, as caranguejas, os gurupés e via as nuvens passando baixas dando-me uma sensação de movimento e propelindo minha imaginação para a experiência de estar navegando, navegando mar afora à aventura da vida, à aventura dos meus sonhos com os pescadores mais valentes da Terra Nova!...
Subitamente, uma pesada manápula fechou suas garras em torno do meu braço esquerdo com tamanha força e a dor foi tão lancinante, que gritei achando que haviam esmagado meus ossos!
“Anda cá, meu bandidinho, que vais sair daqui preso para a tutoria”, berrava o monstruoso contramestre cuspindo milhões de perdigotos no meu rosto! E lá fui eu arrastado convés afora até uma gaiúta à prôa, forçado pelas estreitas escadas abaixo até à câmara dos oficiais.
A câmara era um conforto só e estava quentinha para que os principes do mar e suas convidadas esquecessem as agruras da friagem externa, enquanto conversavam e sorviam vagarosamente seu chá, mordiscavam biscoitinhos recobertos de chocolate e tomavam licores reservados às divindades!
“Encontrei este miúdo escondido entre os dóris, senhor capitão! Penso que se preparava para sair conosco para o mar como já aconteceu com outro na viagem anterior...”
O velho comandante fixou seus olhos em mim e perguntou: “Que idade tens tu, meu rapaz?” E continuou: “Quem te trouxe para bordo?”
Procurei coragem no olhar misericordioso da linda e distinta senhora à minha frente, enquanto declarava que iria completar treze anos e que pagara vinte e cinco tostões ao chateiro para me trazer à borda e me levar de volta quando eu fizesse sinal, que não havia ninguém no portaló na hora que entrei e que não tinha nenhuma intenção de ficar para sair com o navio!
Uma chalupa do “Ana Maria” devolveu-me a terra depois de muitas desculpas e, enquanto saboreava lentamente o chocolate oferecido pela formosa e distinta dama, voltei-me admirando orgulhoso o magnifico lugre, último dos grandes bacalhoeiros a navegar exclusivamente à vela e que, um ano depois, desapareceria nas águas geladas da Terra Nova!