VIDA DE GADO
Neste último domingo resolvi visitar meu cunhado que mora na cidade dormitório de Carapicuíba. Se o leitor não souber o que significa cidade dormitório, terei a boa vontade de explicar para que compreenda o teor exato do conceito. Se souber o que significa, pule esta parte e vá até o próximo parágrafo, pois minha intenção não é aborrecê-lo, mas acrescentar mais conteúdo à sua vida. Ficarei feliz se o meu desejo for alcançado.
Vamos lá. Cidade dormitório é o nome que se dá a um município que não possui grande atividade econômica, ou sua economia é tão incipiente que não consegue absorver toda a massa de mão de obra que reside ali. Esta é invariavelmente desqualificada e precisa atravessar vários municípios para encontrar trabalho, retornando para casa apenas para dormir.
Carapicuíba é exemplo notório de cidade dormitório. Município pequeno, mas com grande população, pouco índice de desenvolvimento humano (IDH), pouca intervenção do poder público em todas as áreas fundamentais, grandes bolsões de pobreza e miséria e a população pouco ou nada cobram em relação a todas essas carências.
A “vitrine” carapicuíbana é a estação de trem. Sem dúvida, o meio de transporte mais importante que liga esta cidade a outros municípios. Uma pequena olhadela por esta “vitrine” já expõem suas mazelas. São dezenas de camelôs espalhados no entorno da estação, muitos bares decadentes, muito lixo e sujeira, praticamente todas as paredes e muros são pixadas e a população parece ter um péssimo gosto no que se refere à decoração de portas e fachadas dos comércios.
O trem acima citado é administrado pela Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM). Digo administrado, mas para quem utiliza esse meio de transporte, a impressão é de completo abandono. Desde tenra idade utilizo estes trens. Por incrível que pareça são os mesmos da década de 1970. Seu estado de conservação já está lastimável. Não há segurança nem conforto nas viagens. Parece que este trem foi concebido para se transportar gado.
Junto a tudo isso, há o problema dos camelôs ou marreteiros, que vendem suas inúmeras mercadorias dentro destes. Tal procedimento é considerado uma prática ilegal e frequentemente estes trabalhadores são abordados pelos seguranças e têm seus produtos apreendidos.
Por que não regulamentam essa atividade dos camelôs? Se existem é porque a oferta de trabalho não dá conta da demanda. A preocupação da CPTM não é a de solucionar o problema, mas unicamente reprimir de maneira grosseira e violenta aqueles que já estão à margem da sociedade. Lamentável.
Contudo, uma viagem nestes trens é algo surreal. Acontece tantas e tantas coisas que poderia dar páginas e páginas de relatos. E por que surreal? Vou contar, caro leitor, tenha paciência que é a virtude dos sábios.
Depois de descrever a paisagem carapicuíbana e o aspecto decadente dos trens, passo para a parte humana que costuma ser ainda mais decadente do que os aspectos físicos.
Entrar no trem é o primeiro desafio. Pois na entrada e saída dos passageiros, os que vão entrar não aguardam a saída dos que estão no trem Então pode-se imaginar a confusão que se arma quando as portas do trem se abrem. Um exemplo de boa educação pode ser aprendido aqui, qual seja, a de que o que importa é que eu consiga um lugar para me sentar, o outro, independentemente se se trata de gestante, idoso ou deficiente físico que se vire. “Cada qual com os seus problemas” seria um bordão adequado para este episódio.
Minha sorte é que era um domingo, por isso a quantidade de passageiros é bem menor e o problema descrito no parágrafo anterior não acontece neste dia.
Todavia, não há um só dia em que não haja camelôs nos trens. Estes não se importam com o bem estar do passageiro, mas tão somente com a venda de seus bagulhos. Entravam indiscriminadamente nos vagões e começavam a gritar sobre seus produtos e seus respectivos preços. Discutiam entre si a plenos pulmões e seguravam as portas do trem, alheios à sua condição de marginais, sem direitos de qualquer espécie.
Havia também uma dezena de garotos, cada qual com sua bicicleta, obstruindo a passagem das pessoas. Falavam alto e ainda palavras obscenas sem se importarem com quem estava ali. Como se aquele transporte público fosse coisa somente deles, para que usassem da maneira que achassem mais conveniente.
Um garoto trazia consigo um telefone celular que tocava músicas em som alto, para que todos ficassem cientes do seu péssimo gosto musical. Raps, funks, pagodes eram a trilha sonora daquele domingo de sol frio de outono.
Para incrementar todo espetáculo, havia um homem de aparência jovem, com terno e gravata, uma bíblia entre as mãos que se mexia e falava freneticamente. Contudo, ao prestar atenção nele, percebi que ele falava sem que ninguém prestasse atenção à sua conversa. Sua expressão tinha ares de loucura, e ele coçava o nariz o tempo todo. Desculpe a grosseria estimado leitor, mas o homem enfiava mesmo o indicador no nariz e retirava as imundícies sem se importar se quem pagou quis ver àquelas cenas grotescas.
Aquele homem perturbado deveria ser fruto de seu fanatismo por alguma religião. Ou será que estava mesmo falando com alguma entidade divina? Não sei. O que sei é que não havia quem não reparasse aquele comportamento estranho. Até mesmo minha filha de nove anos perguntou-me:
Pai, esse cara é doido?
Não filinha, ele apenas respirou grande quantidade de ácaros.
Depois de algumas estações entrou um homem com alguns folhetos na mão, tal homem mesmo vestido com terno e gravata tinha uma aparência de maltrapilho. Era notória sua falta de elegância. Se nem de terno um homem consegue dar uma boa impressão... E a minha impressão piorou quando recebi o folheto, li o conteúdo e olhei a foto.
O folheto era da Igreja Deus é Amor e trazia uma foto com seu fundador o missionário David Miranda numa sala rodeado por dezenas de cadeiras de rodas e centenas de muletas. Na hora não prestei atenção, mas em casa olhando melhor, percebi que as cadeiras de rodas e as muletas eram todas iguais. Ou seja, todos os doentes que se curaram na igreja do missionário curiosamente usavam o mesmo tipo de cadeira e muleta. Deveria dar esse toque para que ele não incorresse mais nesse erro primário.
Para completar esse domingo de bizarrices, de repente um homem tenta sair do trem na hora em que este estava fechando as portas. Foi preciso que um camelô segurasse estas para que o homem saísse. Ao sair, começou a gesticular e gritar. Foi então que perceberam que ele havia esquecido um colchão enorme enrolado e amarrado dentro do trem Quando o homem já havia dado por perdido o tal colchão, um rapaz que trazia uma tuba nas mãos pegou o colchão, o enfiou com dificuldade pela janela e o soltou com o trem em movimento para alegria do dono.
Então todos deram muitas risadas. Até mesmo o doido que enfiava o dedo no nariz.
Depois de tudo isso, fiquei feliz por lembrar que não preciso mais pegar esse trem todos os dias. Entretanto, o que seria muito bom é que teria assunto para escrever crônicas todos os dias.