A dúvida de cada dia

A dúvida de cada dia

Maju Guerra

Quando anoitecia ela sempre ficava apreensiva, olhava para os filhos como que pedindo desculpas. Percebia nos seus olhinhos assustados a dúvida, a dúvida companheira de toda noite, a dúvida de cada dia. Estava se aproximando a hora dele chegar, como viria dessa vez? Essa era a questão crucial. Estaria bêbado e agressivo, ou carinhoso, manso como um cordeiro, trazendo doces para todo mundo? A intrigante e sofrida pergunta de cada noite pairava no ar como a ponta de uma espada.

Naquela noite ele chegou que nem um cão raivoso. Abriu a porta e a bateu com força, chegou a doer os ouvidos. Ia ser uma das piores, com certeza. Ele olhou para os quatro, olhos vermelhos e maldosos, tinha antes passado no bar, e quando bebia muito não tinha fome. Gritou, chamou todos de inúteis, porque se não fosse por ele seriam uns “jogados fora”, ele pagava todas as contas, deviam lhe agradecer, bando de parasitas.

Ela tentou acalmá-lo, falou com carinho e baixo, mas foi em vão. Acabou por levar um tapa que deixou uma marca no seu rosto. Era o sinal, todos correram e se trancaram no quarto. Ele bateu na porta, chutou, xingou, por fim desistiu. Foi para a sala e ligou a televisão no volume mais alto já de propósito. Mesmo com o barulho eles dormiram, estavam habituados. O mais novo adormeceu soluçando, abraçado com a mãe que fazia cafuné na sua cabeça de forma irrefletida. Ela não conseguia sentir nada, coração murcho.

De manhã foram para a cozinha. Ele dormia no sofá da sala, desalinhado, o rosto inchado. Quando acordasse ficaria de cabeça baixa enquanto se arrumava para o trabalho, faria tudo em silêncio, nunca explicou se era por vergonha ou sabe-se lá o motivo. Na cozinha a confusão costumeira, as comidas misturadas na pia, panelas sujas, feijão jogado pelo chão, o arroz e a couve em cima da toalha da mesa. Uma imundície que ela precisava limpar antes de preparar o café.

Os filhos a olhavam de soslaio como que perguntando o porquê daquela vida. Ela ficava com dó, as carinhas tão tristes, mas não sabia responder. Não tinha forças para ir embora, e também para onde iriam? Ela era só uma dona-de-casa, de que maneira conseguiria sustentar todos, era uma interrogação. Durante o dia, quando os meninos fossem para a escola, iria à igreja, certamente descobriria um modo de libertá-los, havia de ter um.

Mas, e se ele chegasse alegre e carinhoso como se nada tivesse acontecido? Ele era muito bom quando queria, isso era a mais pura verdade. E se por um milagre ele mudasse e implorasse perdão? Coisas assim acontecem todos os dias. É, talvez valesse a pena esperar...

Marai Julia Guerra.

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