Amor e Destino de Jussara
Jussara definhava. Acamou e não se levantou mais. Sua mãe e suas irmãs se revezavam em cuidados e vigília. Tentavam animá-la com convites de passeios, festas, caminhadas, missas, novenas, mas nada de Jussara reagir. Médico fora chamado. Fizera exames diversos, de todos os tipos. Nada encontrara, a não ser uma profunda depressão. Uma falta de vontade de viver. E Jussara não cooperava. Trancou-se num silêncio profundo, alimentando-se precariamente, tratando o corpo com desprezo.
Sua mãe, viúva de longa data, afogava-se em prantos demorados, culpando-se pela incapacidade de ajudar sua filha caçula a superar aquela angústia mortal. Lamentava-se ainda, de ocupar-lhe o tempo com tarefas domésticas e outras que o pai, falecido deixou. Jussara dedicou boa parte de sua juventude a acompanhar e amparar a mãe, e restante da família sempre que era solicitada, ajudando na educação dos sobrinhos, intervindo em desavenças, organizando festas. O tempo de Jussara passara e com ele a beleza, a juventude; se bem que ela ainda era uma mulher formosa, com dotes físicos admiráveis, apenas maltratada pela corrosão dos anos. Todas as suas irmãs – eram três: Rosário, Selene e Margarida – se casaram e geraram filhos, mas Jussara não. Disso Dona Otília, a mãe, se ressentia; tinha receio de vir a morrer e não cumprir a sua missão mais sagrada em vida: encaminhar e casar suas filhas. Jussara tornou essa tarefa mais laboriosa quando, ainda adolescente, se apaixonou por Olavo, um moço convicto de sua solterice, namorador, difícil de “fisgar” no anzol das moças. Também Olavo permanecia solteirão, mantendo um compromisso de namoro antigo, sem fidelidade, com uma donzela de nome Cremilda.
Todos sabiam da paixão não correspondida que Jussara nutria por Olavo, até ele próprio, porém nunca houve, da parte de Jussara, iniciativa em direção a Olavo. Apenas aquela adoração obcecada, de fazê-la tremer na presença dele. Ele a tratava com respeito e educação, quase carinho. Ela alimentava esperanças por conta desses modos do moço. Os dois naquela altura, aos 35 anos de idade, já reservavam o futuro de suas vidas para o que lhes poderia oferecer o destino sem muitas surpresas.
Jussara, naquele estado de moribunda, passou a suspirar constantemente, sem dizer uma palavra sequer. Sua mãe e irmãs acharam por bem chamar um padre para benzer o resto de vida e o espírito que ainda lhe habitavam o corpo. Veio o Vigário a preparar o ritual e convocar toda a família para as orações de ocasião. Todos consternados compareceram e se esmeraram em súplicas por Jussara.
As orações já findavam quando Jussara começou a se debater levemente, levando as mãos ao peito, apertando o coração e a suspirar fortemente. O Vigário, temendo que fossem as últimas manifestações daquela pobre vida preparou-se para a extremunção, precavido que era em seu ofício.
Entretanto, para o completo espanto dos presentes, Jussara começou a balbuciar algo. O Vigário se aproximou, imaginando que a moribunda estive querendo se confessar ou se manifestar em últimas palavras. Pediu misericordiosamente que Jussara fizesse um esforço de falar para que a pudesse ouvir e entender. Ela, então, enchendo de ar os pulmões, num forte e pesaroso suspiro exclamou sem reservas:
- Oh ! meu Deus, será que vou morrer sem me casar ?
Uma comoção tomou conta de todos os que estavam no quarto e não faltaram lágrimas para chorar aquele pesar. As irmãs saíram por um breve momento e, após conversarem, chamaram a mãe e o Vigário. A idéia era realizar o último desejo da querida irmã caçula qualquer que fosse o preço. E seria com Olavo. Ele não recusaria uma caridade dessas, ainda mais com súplica da família abençoada pelo Vigário.
Uma comitiva foi composta para a missão; e deveria cumpri-la logo, pois Jussara, parecia, não dispunha de muito tempo. Assim foi feito. Olavo foi procurado e convencido de sagrada tarefa, com promessa de que logo ficaria viúvo, herdando os bens da falecida e, ainda, livre para contrair, daí a algum tempo, novo matrimônio se fosse o caso. Quem protestou até o desespero foi Cremilda, mas resignou-se depois de ser repreendida até pela sua própria família. Onde já se viu, deixar uma alma como a de Jussara, partir em sofrimento.
A cerimônia foi marcada para dali a três dias, após o médico garantir que Jussara sobreviveria até lá. Jussara, então foi comunicada. Teve uma melhora surpreendente e seu semblante foi ficando menos lúgubre, até que no dia do casamento tinha um ar angelical, a tez rosada, os olhos vivos. Pentearam-lhe os cabelos, maquiaram-na e vestiram-na de noiva com os pés descalços. Era quase um anjo de branco indo ao céu, completamente imaculada, diga-se de passagem.
Aconteceu o casamento. Olavo, num ato de extrema elegância e compaixão beijou a noiva suavemente na boca. Jussara sorriu um sorriso curto, que emocionou sua mãe aos soluços e a todos comoveu. Olavo pediu que todos evacuassem o recinto, pois queria dar à sua moribunda esposa o prazer de estar a sós com seu amado esposo. Ficou algum tempo contemplando aquela mulher a quem nunca tinha dado a devida atenção, acariciando seus cabelos e segurando carinhosamente suas mãos. Pelo canto dos olha de Jussara corriam algumas lágrimas, junto com um acanhado sorriso de felicidade plena. Olavo deixou-a dormindo de exausta. Voltava todos os dias a certa hora pela visitá-la e, cada vez que vinha, notava que Jussara melhorava a olhos vistos. Já conversava animadamente, comia com apetite e começou a acostar-se nos altos travesseiros colocados entre suas costas e o espaldar do leito, até então de morte. Todos perceberam a espantosa recuperação e temiam a reação de Olavo. Ele, porém começou a se demorar mais tempo no quarto e um dia deparou com Jussara de pé caminhando pelo quarto. Reparou nas curvas sob o penhoar que cobria a camisola fina, naqueles dias de muito calor. Como nunca tinha reparado naquela mulher bonita, que o amava ? Olavo, naquele espaço de tempo se afeiçoara Jussara, abraçava-a com ternura, beija-lhe a fronte muitas vezes, quando estavam juntos.
O amor e o destino se aliaram decisivamente neste caso curioso. Jussara se recuperou completamente do mal que a acometeu, tornou-se uma mulher exuberante, uma balzaquiana redimida e feliz. Teve como Olavo uma vida alegre e dois sadios filhos e viveram felizes até que a morte os separou. E não foi a de Jussara. Olavo partiu dessa vida primeiro e deixou Jussara mais de quinze anos viúva, até que se juntou a ele.
A vítima do destino foi Cremilda. Esta entristeceu de tal maneira, que não se interessou por mais ninguém ficando, até os fins dos seus dias, solteira.