POBRE POMBINHO MANCO ESPANHOL

As cidades portuguesas e a espanhola visitadas por nós nessa viagem à Europa proporcionaram aos nossos olhos e corações imagens e registros a perenizarem-se n'alma e se fazerem presentes constantemente nas recordações e nas fotos. À medida que os surpreendentes espetáculos desfilavam ante nossos olhos eu ia freneticamente anotando para não esquecer nenhum detalhe ou pormenor, embora muita coisa se perca porque há tanto para ver e admirar e tão pouco tempo para tudo. Afinal de contas, outras paragens visitadas têm sempre algo novo em profusão e espetáculos de beleza e encantamento que, de tão fascinantes, nos embriagam ao ponto de esquecermos ou não termos condições de registrar cada ponto em notas ou em instantâneos.

Já em solo espanhol, em frente à Catedral de Santiago de Compostela assistimos à chegada de vários peregrinos que fizeram, a pé, o famoso caminho de Santiago, todos felizes sob o peso da bagagem nas costas, o enorme cajado na mão direita, cabaça e concha penduradas como alforjes, os rostos curtidos pelos dias de sol e chuva. Abraçavam-se entre si sorridentes como crianças entusiasmadas e corriam satisfeitos na direção da Catedral, os braços entreabertos, alguns chorando, e muitos deles chorando e rindo ao mesmo tempo. A cena tocante emocionava como se estivéssemos assistindo a um filme dramático. Quase senti descer-me a face a lágrima atrevida que tentei sufocar enquanto pensava que somente uma grande força de vontade aliada à fé capaz de erguer montanhas poderiam sustentar o esforço desses andarilhos em caminhar dias e dias sob o frio, a chuva e o sol, além do desconforto, da sede e da fome para, depois de tantas vicissitudes, visitar o túmulo de São Tiago e abraçar seu busto em orações. O objetivo alcançado parecia dar-lhes ao rosto aquele irrefutável ar de êxtase não encontrado em outras situações.

Ao voltarmos do almoço, fazendo malabarismos para fugir da chuva insistente e molhadeira naquele entardecer sombrio que bem poderia estar ensolarado em Santiago, algumas vezes fazendo paradas apressadas para bater fotos quando o aguaceiro amainava, escutamos, ao longe, o barulho característico dos grupos de estudantes da universidade de Santiago entoando suas canções em altos brados. Conhecidos por formarem conjuntos musicais denominados Tuna de Santiago de Compostela e venderem suas gravações enquanto cantam nas igrejas da cidade, arrebanhavam turistas que passavam nas imediações e entoavam suas músicas em alto e bom som. Ainda quisemos ir até lá para apreciar sua arte mas razões adversas, mormente a chuva, não nos permitiram

Tão-logo pusemos os pés na Espanha, experimentamos a famosa torta de santiago sabor amêndoa com a bela cruz estilizada tão característica, devoramos os pãezinhos recheados de manteiga e mel e bolachas tanto de amêndoa quanto de outras gostosuras, produtos estes vendidos a peso de ouro e em euros por uma senhora galega que falava apressada e enrolada em três idiomas, francês, português de Portugal e o dialeto da Galícia. De cara, à nossa chegada em seu estabelecimento, como não conseguíamos compreendê-la, perguntou-me "Parlez vous Français(você fala francês)?", e eu, em não sabendo, respondi-lhe em inglês "I d'ont speake french, only english(não falo francês, somente inglês)", recebendo como réplica um balançar de cabeça a determinar incompreensão e o jorrar de palavras arrevesadas na língua de Lisboa. A partir de então, de modo cangueiro porém razoável, logramos nos entender e foi possível experimentar o delicioso pão de mel que nos vendeu por um preço absurdo.

Compramos, como sempre fazemos em nossas viagens, imãs de geladeira nas cidades de Santiago de Compostela, Fátima, Sintra e Lisboa, não tendo sido possível, porém, encontrar tal artigo nem em Coimbra nem em Porto(os amigos dessas cidades portuguesas teriam como enviar-me um imã artesanal representando o cartão postal de cada uma dessas cidades?). Esses objetos do universo artesanato das localidades por onde passamos, juntamente com as fotos dos pontos mais interessantes e as anotações feitas ao longo da viagem, compõem o conjunto de recordações desses passeios maravilhosos realizados por mim e minha esposa durante o ano.

Quando voltávamos de Porto para Lisboa, por volta das dez horas, horário de Portugal(no Brasil ainda eram seis da manhã!), revendo a bela paisagem às margens da auto-estrada, a guia que nos ciceroneava durante quase todos os momentos da viagem nos mostrou formações inusitadas sobre os postes de energia elétrica, à nossa direita, dizendo tratar-se dos malabarismos impressionantes feitos pela fauna portuguesa, pois aquilo se tratava, imaginem só, de nada mais, nada menos, que moradia de cegonhas. Isso mesmo, olhamos na direção por ela apontada e nos deparamos com enormes ninhos dessas fantásticas aves que povoaram os contos de fada de antigamente. Encarapitados nos altos postes e na grande extensão da estrada, se bem que um pouco afastados desta, a grande quantidade de ninhos fez o enternecimento dos viajantes, todos fascinados ante a inigualável novidade. No céu, como pequenos aeroplanos tranquilos sobrevoando o espaço, algumas dessas formidáveis aves deslizavam com graciosidade e absoluta segurança, deixando no ar o fascínio de sua elegância, o encanto de seu charme e a leveza de seu vôo descontraído. Não sendo percebido por ninguém, sorri todo satisfeito e emocionado parecendo um menino ante a descoberta de notável tesouro. Testemunhar o vôo de cegonhas no espaço aéreo português e ver-lhes os ninhos foi mais um espetáculo diferente a merecer destaque especial em meus alfarrábios.

Os olivais e os parreirais espalhados como tapete sobre montanhas e serras foram outra bela manifestação da natureza para os nossos olhos, e bem assim também os sobreiros de onde são tiradas as cascas com as quais são feitas as famosas cortiças, os lindos pinheiros verdejantes e os eucaliptos altos povoando e pintando de verde as margens da estrada ao longo do caminho e procurando espaço entre as outras árvores, tudo passava à nossa frente como paisagem nova a plantar o enternecimento no coração deslumbrado.

E vimos também, estivemos pertinho dele, fotografando-o inclusive, um certo pombinho diferente e esquisito, que tinha a patinha esquerda amputada. Foi estranho para nós encontrar o bichinho com uma só pata a mancar pelo chão atrás de sua turma alvoroçada. Meio angustiados, ficamos nos perguntando quem teria feito tamanha maldade na pobre ave, ou se aquilo aconteceu na luta pela sobrevivência com algum predador. Difícil imaginar, impossível saber como aquilo aconteceu. Ele chegou de repente no meio de nós, junto com tantos outros em revoada, claudicando ao pousar e tentar andar, mancando coitadinho mas ainda assim bicando o chão na busca do alimento disputado também por seus iguais cujo estado físico se mostrava normal. Ana, embora com dó do pobre serzinho mutilado mas querendo guardar em foto aquele acontecimento inusitado, mirava-o à procura do melhor ângulo enquanto ele saltitava desajeitado procurando migalhas para comer. Houve um instante, contudo, em que ele pareceu perceber a intenção dela e, fazendo inesperada pose, permitiu ser fotografado. Depois, já imortalizado na foto, juntou-se aos companheiros e saiu a voar escondendo o defeito na leveza de seu glorioso vôo. No solo ele claudicava, no espaço reinava.

Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 18/04/2009
Reeditado em 20/04/2009
Código do texto: T1547051
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