Nosso outono embala o sono – deles.

Nosso outono embala o sono – deles.

Ficaram todos felizes com a minha aparição. Sou assim mesmo, de quando em vez apareço.

Todos = a senhora de poucos dentes, que vende panos de prato e cigarros paraguaios.

Eles = colocam o preço do cigarro lá em cima, a título de higienizar a população.

Quaisquaisquais.

No fundo estão fazendo mais um caixa, e agente ajoelhamos amém. Já o preço da cachaça está um dedo além da água benta.

Melhor assim. As gentes transloucadas para não protestar contra a barbárie mal mascada.

Ela sorriu de um jeito agradecido que, palavra, dois desses por dia e durmo em paz, mesmo quando queiram me acordar.

Todos = meu protegido meio cego e descolorido, que também ganhou seu quinhão em moedinha corrente, sorrindo em virtude disso.

O sorriso de gratidão de quem encontra minguado alento no meio da perene aridez é igual em qualquer feição. Meu amigo meio cego insiste que eu leve a oração das 13 almas, até então desconhecida para mim. Outra vez apelo às Irmãs Recantistas, para me explicarem do que se trata. Estamos sob o frontispício da igreja Imaculada Conceição, na Brigantonio Luizandeiro com a Paulista, quase isso.

17o – (Graus).

“Volto pra casa abatido, desencantado da vida...”. Conversa. Volto ciente de uma brilhante aquisição, carregando um saquinho plástico contendo 3 maços paraguaios de 1,50 cada, 1 pano de prato bordado e a oração das 13 almas.

Venta.

Se vejo um cão atravessar a calçada, vislumbro um presságio.

Jornais de ontem apregoam as notícias fabricadas de sempre. Não sei por que se dão a tanto trabalho.

Foi o tempo justo de deixar os substantivos em casa e tomar a condução para assistir o soprador mor da colônia, ex discípulo do bruxo albino, Sr. Carlos Malta.

Os trajes dos espectadores de música instrumental são o que se espera. Ninguém será capaz de fazer a tradução do Brasil que escorre, sem a devida prolixidade.

Remocei 20 anos com o quarteto extra terrestre, que brinca com “Chovendo na Roseira” e “Aquarela” como quem rola na grama orvalhada e sobe no topo da árvore. Como quem tem o privilégio de ter essa graça. Da grama orvalhada sai o melhor cheiro da terra. No topo está-se mais perto do anil.

Pouco depois de retirar o ingresso, testei o produto guarani e posso depor, com bastante propriedade, que não tem contra indicação.

Testei vagarosamente, enquanto defumava o noticiário dependurado na banca. Quando se fica um tempo sem lê-lo, perde ainda mais o sentido.

Avenida mansa às 22 horas.

Gosto das noites que me abrem as portas para noites que não estão presentes.

Carlos Malta fez a gente assoviar e bater palma cadenciado, enquanto ele tocava instrumentos de sopro que pareciam não existir. A platéia se envolveu espontaneamente. Todos os dias precisamos de um empurrãozinho para qualquer coisa. Depois vamos sozinhos, até perder o fôlego e as mãos cansarem.

16o – (Graus).

Venta.

Em casa, minhas plantas exclamam: o mundo está mudando.

Eu lhes pergunto: qual mundo? O seu ou o meu?

Elas gargalham: o seu! O nosso é eterno.

No outono, as plantas parecem cantar doidivanas, baixinho, como loucas que fugiram do hospício de pijamas e se mesclaram na multidão, para despistar a ira dos que as perseguem. Cantam baixinho para se proteger.

Com exceção de segunda feira, todas as noites foram estranhas.

Pelas manhãs, vestígios borrados de bons sonhos, expressam sem dúvidas que estive com conhecidos que jamais vieram para essa atmosfera. Sinto-me como um mensageiro de duas vias. Em todo caso, já não desperto sobressaltado, achando que, se fosse ontem, despertaria melhor.

Examino o pano de prato com a satisfação de quem passou anos nesse labor, e se encanta com aquele que mais se sobressai.

Artigo limpinho para uma casa de solteiro sem quadros na parede.

Peço para todos.

Todos = os que nem se lembram de mim, mas merecem as minhas preces, e os que me sorriem gratos, pelo pouco que tenho a oferecer.

Dia desses minhas plantas irão dizer que perceberemos o outono da mesma forma de quem molha os lábios sem lembrança de ter ido à fonte.

As melhores coisas ainda estão sendo elaboradas.

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 17/04/2009
Reeditado em 13/05/2013
Código do texto: T1544466
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