Os segredos do oceano
Primeiro foi uma sensação de pressão, algo que se percebia sutilmente mas não era identificável. Depois, a indefectível escuridão – nuvens se adensavam, percorriam o céu com pressa, ocultavam as luzes diurnas às vezes de forma tênue e em outras acintosamente, transformando em noite aquele dia que ainda ia pelo meio. E por fim, o característico cheiro, quase um perfume que remetia a infância, campo, refúgio: cheiro atávico de umidade boa, nos fazendo lembrar da terra à qual pertencemos, desde o começo até o fim.
E ela chegava sutil, vagarosa e delicada como uma carícia, para depois se ir intensificando e colhendo pelas ruas passantes distraídos. Ia aos poucos se infiltrando, maliciosa, por tramas de roupas, vãos de janelas, buracos de telhados. Foi desvendando tudo pelo seu vertical caminho, e enquanto corria pelo chão levava consigo segredos até então ilusoriamente bem guardados.
Sentiu o sal das lágrimas da moça que acabara de chorar pelo amor perdido. Passeou pouco inocentemente pelos cabelos grisalhos do homem sério, mas ansioso por um toque feminino. Levou um pouco da sonolência do morador de rua, entregue passivo às suas gotas frias por absoluta falta de outra possibilidade. Saboreou o gosto dos doces da barraca do vendedor ambulante, que inutilmente tentava cobri-la com sua lona esgarçada. Participou da alegria dos meninos de rua, dançando encharcados de seu líquido brinquedo.Viu pelas vidraças embaçadas das casas cenas cotidianas, com rompantes de ódio e de amor; e – ainda que lutando contra o limpador de pára-brisas - presenciou, implacável, a solidão do motorista.
Ela sabia tudo e tudo comandava.
Empurrou homens antes apressados ao balcão da padaria para um café extemporâneo. Fez encolherem-se, como bichos acuados, corpos cansados da lida sob a estreita cobertura do ponto de ônibus. Deu forças a velhos braços para que erguessem suas sacolas de compras sobre a cabeça, quase que inutilmente. Culpou os pneus nas poças pelos banhos frios fartamente distribuídos. Traiu estudantes com seus cadernos, provisoriamente transformados em minúsculas marquises. Fez perderem o charme as moças de salto alto. Aninhou ainda mais os enamorados. Desprezou (e borrou) as más notícias dos jornais. Embaçou óculos, arruinou cabelos, encheu baldes. Inundou planos. Destruiu algumas vidas, salvou outras.
Eu espiava esse fenômeno onipresente e onisciente por detrás da janela, abrigada pelo meu teto até então eficaz. Sentia que ela me espiava também, um Grande Irmão líquido dividido em milhões de gotículas curiosas que enxergavam através de meus olhos. Não adiantava fechá-los, ela sabia tudo. Tudo! E ia levar meus segredos pelo bueiro, atravessar a cidade com eles, despejá-los no rio...
Finalmente, depois dessa tormenta, meus segredos e os de tantos outros ficaram definitivamente sepultados no fundo do mar. E é por isso que mais cedo ou mais tarde, irresistivelmente atraídos, ali queremos voltar – à praia, onde nos encontramos com o olhar perdido ao longe, tentando decifrar o código das ondas e descobrir os segredos do oceano. Os segredos que a chuva, que sabia demais, carregou.
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Este texto faz parte do III Desafio Recantista de 2009.
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