A CHUVA QUE SABIA DEMAIS - USAVA ÓCULOS

A CHUVA QUE SABIA DEMAIS - USAVA ÓCULOS

Marília L. Paixão

Tem chuva que sabe mesmo das coisas. E tem coisas que ninguém deveria saber sequer a chuva. Mas ela sabe. Sabe sim, a danada. Ela sabe que quando passa das dez, uns caras começam a sair para o trabalho sem carteira assinada e sem identidade nenhuma. Aliás, quanto mais disfarçar a identidade, melhor. Ela fica lá observando o cara doido para virar a cobra que dará o bote, que roubará automóveis mesmo com crianças dentro ou fará famílias reféns em seus próprios lares.

A chuva sabe quando uma moça sai de sua morada toda arrumada com seu único corpo, considerado seu único objeto de luxo. A moça que leva na alma as armas do corpo e esconde da alma as penas do corpo que lhe acariciam por dentro vez ou outra. Tudo oculto por pobres maquiagens que lhe dão até alergia. Foi a chuva a única testemunha da noite em que o psicopata lhe enfiou entre as pernas uma cenoura, e ela em estado de imensa dor agradeceu a Deus por ele ter-lhe deixado com vida após inúmeras estocadas, e maldições seguidas. Depois a viu chorando a desgraça, cambaleando de volta pra casa sem mais se importar com o visual, sem se importar com o temporal...

A chuva fica olhando de soslaio para umas reuniões bravas em que pessoas engravatadas evitam os telefones por conta dos grampos. Às vezes, ela tem vontade de mandar um raio exatamente em cima de algumas destas cabeças, mas ela não pode não. Raio é uma coisa perigosa que pode matar sem nenhuma prosa e chuva não pode matar ninguém assim escolhido pelos dedos dos seus olhos de água. Infelizmente, é mesmo sem querer que ela consegue matar e querendo ou não, sua própria mãe natureza lhe criminaliza pelos deslizamentos de terras e outras inundações infindas.

Sim, ela é consciente que de nada é mocinha e se permite por hora descansar depois de a tudo assistir. Lá do seu trono com a cabeça de rainha erguida, sabe de suas contribuições no desandar do bem e do mal. Afinal, mesmo quando apenas assiste, não pode fazer nada para ajudar a salvar nenhuma moçada, nenhum indigente ou cãozinho perdido. Ela sente que sabe demais, mas é um saber de nenhuma brava gente. É um saber que passa a ser alcoólico e negligente como o de motoristas embriagados que tiram vidas de outras gentes.

Essa chuva que nem sempre é boa e nem sempre é má também tem vontade de chorar e chora. Chora por crianças que são raptadas. Chora por bebês abandonados, chora por mulheres infelizes, chora por idosos desamparados... Muitas vezes tem que abandonar um choro para ficar atenta diante coisas novas que acabam por aumentar os desgostos de sua impassível existência. Pois há jovens que se aliam a gangues cobertas de intolerâncias. Estas por conta do acaso se aproximam de um mendigo e lhe pergunta: Está com fome de quê? E se o pobre homem murmurar: comida. Eles lhe ofertam a pontapés os últimos dentes em grande sangria. Estes momentos são os que dão à chuva a maior agonia de poder ser apenas o que ela é: silenciosa parceira do tempo, cúmplice da vida e da morte, cúmplice da falta de sorte.

Vez ou outra pelo planeta há momentos que são inesquecíveis para ela. São de encanto e de carícias entre os seres. São momentos de olhares cruzados de olhos fechados e sorrisos abertos. As línguas chegam a tocar a chuva e a chuva chega a provar das línguas. E com o passar de sal para doce e de doce para sal os sabores dos corpos que se amam, a chuva sente vontade de se transformar em mel. Sente vontade de ser uma chuva que pudesse até contar sobre a beleza de visitar os sonhos como os que eu tenho com você. Você que em meus sonhos nem sabe onde estão seus óculos. E a chuva com seu olhar cúmplice a lhe dizer: - Eles estão aqui.

Então você olha a chuva usando seus óculos e sorri. Como se ela a tudo pudesse assistir. Deve ser essa a hora em que a chuva lhe pisca ou apenas sorri.

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Este texto faz parte do III Desafio Recantista de 2009.

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Marília L Paixão
Enviado por Marília L Paixão em 17/04/2009
Reeditado em 09/05/2009
Código do texto: T1544200
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