A chuva que sabia demais
Chuvas de lições
 
A chuva conhece meu eu.Diante dela, minhas emoções ficam desnudadas. Talvez seja por isso que eu prefira as manhãs de sol e fique incomodada com dias seguidos de aguaceiro.É como estar diante de um amigo que me conhece às avessas, e eu não posso, assim, disfarçar minhas fraquezas e medos.
 
A chuva sabe, por exemplo, que detesto molhar meus pés em poças d’água que se formam nos calçamentos trincados. Mas,muitas vezes, depois de uma travessia forçada, saio com eles levemente umedecidos.Como na vida, nem sempre posso pulá-las ou desviá-las.Tenho de encará-las.E depois do enfrentamento, penso que não foi tão ruim assim a experiência. Saí inteira, afinal.
 
Já fiz planos sem consultá-la.Resumo da ópera: o final de semana que eu contava em caminhar ao ar livre em parques e/ou brincar com a areia branca da praia foram adiados por conta de uma chuva brava. Adiados por dias ou semanas.Ela faz isso para me mostrar que é preciso ser versátil e estar preparado para as intempéries da vida.Ter nas mangas da camisa o tal do plano B.
 
Certa vez, perto do final do expediente, uma tempestade caiu sobre a cidade. O mais prudente seria aguardar que ela abrandasse antes de sair pra selva de pedra. Mas eu a desafiei.Quem disse que gosto de esperar? Sou deveras ansiosa.
 
Pouco tempo depois, dentro do meu carro, eu era uma ilha, cercada de água por todos os lados.Não era possível divisar o asfalto e a calçada, e eu ali, prisioneira de meu próprio destempero, por não ter aguardado o momento certo para agir.
 
Também já caminhei sob uma garoa fina totalmente desprotegida, enquanto a maioria dos passantes ostentava grandes guarda-chuvas que enchiam de cores as ruas cinzentas e irregulares de Sampa.Amarguei uma gripe por conta disso.A chuva sabe que sou meio moleca. Aprendi que é preferível carregar um guarda-chuva chato do que uma gripe que pode atrapalhar minha rotina.
 
Não foram poucas as ocasiões em que eu culpei a chuva pela minha inércia. Porém,quando a  bonança chegou, vi quanto tempo perdi me esquivando de coisas que eram realmente importantes. Eu sou responsável por seus próprios atos enão posso culpar ninguém ou nada pelo que faço ou deixo de fazer.
 
Por outro lado, aprecio a chuva mansa que deita sobre o meu telhado de madrugada e embala meu sono, qual uma canção de ninar.A chuva sabe que sou dengosa e por isso me acarinha de vez em quando.
 
Do mesmo modo, é bom sentir o cheiro de terra molhada e é fascinante desfrutar da visão de um arco-íris quando o céu recolhe a chuva.Ela sabe como gosto de pessoas e de coisas simples, e que não precisa de muito para me ver sorrir.
 
Sim, a chuva sabe muito sobre mim, sabe como temo os clarões e estrondos de trovões.Pois é, para se viver plenamente, é preciso fazer algum barulho de vez em quando.
 
Mas a chuva não é santa, não. Lembro-me de uma tarde de verão em que meu querido e eu nos amamos longe das quatro paredes.E ela, como uma vouyer de primeira, depois de saciada a sua curiosidade, nos presenteou com a água gostosa que banhou nossos corpos suados e encheu-nos a alma com mais alegria.
 
É que ela sabe que em relação ao amor, nada pode fazer para me disciplinar.Eu amo sem medida.E não há dilúvio capaz de mudar isso.
 
Lições que eu tirei e tiro gota a gota da chuva.Como diz o adágio popular, quem está nela, é para se molhar, não é? Já não me importo mais em me molhar.
 
 

(Maria Fernandes Shu – 17 de abril de 2009)
 
 "Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem de grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite" -Clarice Lispector

Este texto faz parte do III Desafio Recantista de 2009.
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Maria SHU
Enviado por Maria SHU em 17/04/2009
Reeditado em 02/06/2009
Código do texto: T1544199
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