A CHUVA QUE SABIA DEMAIS - SOBRE ALMAS E CORAÇÕES

E por que a chuva saberia demais? Indaguei enquanto uma garoa tímida se exibia do outro lado da janela, sobre a grama faceira do jardim. O que poderia um fenômeno da natureza saber, uma vez que não possui olhos e muito menos ouvidos? O que os incontáveis pingos poderiam conhecer, além do gosto da terra que provam; do verde das plantas que lambem; da poeira das coisas que engolem?

Nada! Afirmariam os especialistas. Coisa nenhuma! Diriam os céticos. Insanidade! Bradariam os racionais. Tudo! Exclamariam os sensíveis, os poetas, os loucos.

Pois, na noite de aguaceiro em que a mulher inundou o travesseiro de lágrimas na tentativa infame de afogar-se em seu amor bandido. E o marido entrou porta adentro no ensejo de salvá-la... Não foi a chuva que de cima do telhado ouviu-a confessar que preferia morrer afundada na culpa, a viver seca pela mentira?

E na tarde em que a garota foi sendo desnudada, enquanto o som agudo dos pingos eclodia dentro da lata, no quintal... Quem testemunhou o medo da primeira vez ser esquecido em meio às roupas jogadas? Quem além da chuva - enquanto transbordava de si a lata - ouviu a menina encher-se de amor para virar mulher?

Do mesmo modo, no dia em que a porta se fechou trancafiando a pancada de gotas do lado de fora e, os dois rapazes puderam despir as roupas molhadas para aquecer os corpos e os corações... Quem, a não ser a chuva encharcaria o preconceito para ver um estranho amor começar?

Há quem diga que seja o ritmo. Outros referem-se à melodia executada pelos pingos, como dedos liquefeitos compondo a nostalgia. Já os cientistas asseguram que é a presença da escuridão que umedece a serotonina. Motivos não faltam para atestar que nos dias chuvosos a mente fica dengosa e busca aconchego no coração. Sobram razões para explicar por que nos dias molhados a alma - que resolve se banhar – libera os sentimentos para passear.

Não encontrei nos laudos da história, registros de feitos memoráveis marcados durante um aguaceiro. De algum discurso dantesco proferido embaixo de um guarda-chuva ou de uma guerra vencida pela força de uma tempestade. Porém, sou capaz de apostar que a música das águas já inspirou incontáveis declarações; instigou inúmeras revelações; libertou fortes emoções. Posso garantir que a chuva já inundou desesperos; banhou lágrimas; lavou dores; abençoou amores; selou beijos; encheu sorrisos...

Poderia ficar aqui pingando acontecimentos e segredos, feito chuva que parece que nunca tem fim. Mas, interrompo para dizer que a chuva que sempre acaba e que sempre soube demais, continuará sabendo de tudo.

Embora, quando o sol volte não reste nenhum vestígio presente. Todos os segredos revelados, todas as emoções sentidas terão sido levadas - em enxurrada- pela fiel confidente. Ainda que por vezes voltem para inundar a lembrança, feito enchente.

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Este texto faz parte do III Desafio Recantista de 2009.

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Léia Batista
Enviado por Léia Batista em 17/04/2009
Reeditado em 23/04/2009
Código do texto: T1544194