A CHUVA QUE SABIA DEMAIS... Sobre nós dois.
Era um dia de chuva, mas um dia de chuva digno desse nome (não lembro a data, e isso agora parece não ter a menor importância). A chuva caía torrencialmente sobre o telhado, deslizava nas pedras do asfalto e encharcava os desavisados que circulavam pelas ruas; descia violenta do céu e abraçava a terra de forma quase selvagem. Foi por isso que segurei nas mãos do passado e escapuli para dentro daquelas ruelas de minhas lembranças... Queria lembrar-me de outras chuvas. Mais amenas ou mais cúmplices! Talvez, mais companheiras.
Abri aquele bauzinho de lembranças, tipo àqueles que carregamos em dias de chuva e caminhei em meu dilúvio, completamente serena. Mansa. Lembrei da chuva que guardava meus segredos de menina que gostava de sair saltando nos poços de lama e que guardava os cadernos dentro de um saco plástico, punha embaixo das árvores que ladeavam as avenidas largas de sua infância feliz, e subia em seus galhos para colher frutas, ou procurar ninho de pássaros.
Um trovão soou ao longe e, imediatamente, lembrei-me da chuva que guardava meus segredos de adolescente que, a caminho da escola, parava para banhar-se nos rios de suas fantasias de menina que sonhava em ser professora, que brincava de faz-de-conta e imaginava-se casada com os príncipes de seus sonhos.
Senti saudades de uma chuva especial. Uma chuva que sabia demais, que tinha molhado meu corpo de mulher e que tinha deixado escapar em seus pingos, as palavras que designavam o tempo de ir e voltar; de falar e calar; palavras de vida e de morte; palavras que param para nos mandar correr ou caminhar solitariamente. Foi numa dessas caminhadas solitárias, numa chuva torrencial de uma cidade anonimamente familiar, que encontrei razão para sonhar, respostas que nenhuma palavra podia me indicar.
Não temi dividir com ela meus segredos e deixei-me envolver por seu manto frio, que aquecia meu corpo e me fazia amar em devaneios, viver fantasias, como uma criança encantada com a vida que, motivada pelo amor, acreditava poder correr atrás do vento para dar cor ao dia-a-dia e se lambuzar de alegria, como menina que inventa o sol*.
Caminhamos na chuva mansa e nos escondemos dos curiosos – há sempre um curioso nas ruas banhadas pelas chuvas – e fomos passear em ruas estreitas: as ruas dos adultos não são largas como as ruas de nossas infâncias, muito menos havia árvores para subirmos, mas havia tanta coisa a ser descoberta, partilhada, que nenhuma chuva nos impediria de seguirmos o caminho traçado pelas águas daquela chuva, que nos levava a uma cascata, onde mergulhamos nossos corpos e recebemos um ao outro em segredo.
Renovada por aquela água cristalina abracei meu segredo e olhei em seus olhos da cor de amor inventado. Um arco-íris se formava ao longe. A menina que adorava a chuva não precisava mais inventar o tempo, ela tinha o tempo de viver e amar, estava em seus braços. Sentia nele o sopro da vida! O vento que tanto buscara em suas corridas infantis,estava ali, com ela, juntos naquela chuva que sabia demais... mas seria, mais uma vez sua cúmplice e confidente!
*Frase de Angela Lara comentando um texto meu. Obrigada Xará pela autorização para usá-la.
Este texto faz parte do III Desafio Recantista de 2009.
Saiba mais, conheça os outros textos: http://www.escritoresdorecanto.xpg.com.br/desafio200903.htm