Da ressaca

Uma boa ressaca convém ser devidamente degustada.

A leve sensação de desligamento das coisas mundanas, a confusão mental e a lentidão de raciocínio, quando não acompanhadas de mal estar físico em níveis intoleráveis, chegam ao limiar do aprazível.

Afinal, a mesma não deixa de ser um estado de entorpecimento, mesmo que escoltada por porções de entusiasmo infinitamente inferiores às usualmente registradas na véspera.

A ressaca perfeita exige um dia de céu cinza, podendo ser eventualmente acompanhada de uma garoa leve. O clima deve, na medida do possível, se adequar às condições físicas e espirituais do protagonista.

Ressacas em dias de céu muito límpido costumam gerar conflitos existenciais insuportáveis, seguidos de balancetes de cunho moral, promessas irrealizáveis, suicídios, entre tantas outras baboseiras do tipo.

Há ainda quem considere a ressaca como o próprio castigo divino, que compensaria o deleite exagerado da véspera, uma suposição que pode ser facilmente desmentida através de duas simples considerações: O mundo definitivamente não é justo; Jesus bebia vinho (mesmo quando só havia água disponível) e mesmo assim precisou ser crucificado.

A verdadeira ressaca deve ter, sob pena de tornar-se contagiosa, índole puramente introspectiva.

Pois muito embora a bebedeira seja uma modalidade esportiva habitualmente praticada de forma coletiva, a ressaca é invariavelmente individual. E não é passível de alienação, absolvição ou procrastinação (a não ser que se emende outro porrete, o que nem sempre é possível, infelizmente).

Enfim, a ressaca tem caráter personalíssimo e de cumprimento sumário.

Bebeu, tomou. Simples assim.

Alguns até classificam-na como doença. Doença incurável, que conste nos autos.

Afinal os sintomas podem ser combatidos com inúmeras panacéias milagrosas, sintéticas ou não, mas a essência ressaca sempre permanece ali, constante, permanentemente alojada na alma sujeito, até segunda ordem do criador.

Particularmente, recomendo, além dos analgésicos, antiácidos e isotônicos de praxe, algum samba bem sincopado de Nelson Cavaquinho, Wilson Batista ou Paulinho da Viola, preferencialmente na voz de João Nogueira (os do Paulinho podem ser por ele mesmo).

Para situações clínicas mais graves, quando nada mais funcionar, recomendo Lupicínio Rodrigues na voz de Jamelão, porém mantendo sempre certa distância de armas de fogo, objetos cortantes, grandes alturas, e afins, que é pra garantir a ressaca da próxima semana.

Herr Brehm
Enviado por Herr Brehm em 16/04/2009
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